No armário tenho os chapéus que o Shine e o Saul me deram na dimensão anterior. Um castanho com uma penugem cor-de-laranja à volta, e outro verde e castanho, que me faz parecer uma jamaicana. Tenho as minhas perneiras anarquistas, às riscas pretas e vermelhas, e as minhas luvas sem as pontas dos dedos, assim como o saco cor-de-rosa cheio de fitas e dourados pendurados que o Shine reciclou do lixo para mim no Verão passado. E tenho um vestido roxo, lindíssimo, aveludado, e um vestido vermelho de algodão canelado, que nunca vi. Ambos devem ficar-me justos e curtos, mas não exageradamente. As minhas roupas novas neste sonho continuam a lembrar-me as da Hope Sandoval. Simples e sóbrias, femininas, fazendo-me recordar dias de chuva no Outono. Tenho saias e collants em tons pastéis, botas compridas e outras mais curtas, ténis, calças de ganga, casacos de fazenda, cachecóis às riscas de cores como um arco-íris, e um vestido às flores em tons outonais, quase até aos pés, que me lembra um cortinado e me deixa fascinada. Decido vesti-lo hoje, e prender o cabelo em tranças. Este penteado fica-me bem nesta vida. Na outra dimensão, nem por isso, embora as tranças me inspirassem. Agora posso usá-las. Gosto cada vez mais deste sonho, apesar de ter perdido, talvez, tantos amigos. E onde estará o meu computador portátil?
Quando saio de casa de bicicleta, para ir ter com o Marco, passo pelo local onde costumava estar estacionado o Carocha verde descapotável que agora é do meu pai. O seu lugar lá continua, em frente ao supermercado de onde o Shine saiu uma vez de pantufas. Mas o carro, obviamente, desapareceu. E ainda tenho que perguntar ao meu pai de onde é que ele voltou do Texas. Aposto como foi de El Paso. Eu e o Marco andávamos a combinar ir até lá. Nesta vida, segundo o Shine, fui com ele a Austin, mas não me lembro. Nem me lembro de ter estado no Tenessee, com a sua família cristã tresloucada. Que pena. Adorava lembrar-me de Memphis, e do Mississipi, dos norte americanos, e mesmo das rezas à mesa dos tios e tias Huckleberry. Todavia, na dimensão anterior, embora não tivesse estado nesse continente, sentia, estranhamente, que estivera. Faz sol, embora esteja frio e precise das minhas luvas sem dedos, e do meu casaco castanho comprido, justo e apertado ao corpo. Uso um cachecol também castanho, muito longo e enrolado várias vezes ao pescoço, e a boina que o Saul me deu e me faz parecer jamaicana. É tão bom quando faz sol em Amesterdão. Toda a gente sorri. Uma onda de energia simpática percorre a cidade de uma ponta à outra, debaixo dos raios ainda pálidos da Primavera nórdica. Sinto-me feliz, a caminho da cantina da universidade, de bicicleta pelos canais que me fazem lembrar pinturas. Desço o Single até virar para a Spuistraat, e atravesso o mercado dos livros velhos em direcção à Rokin. Atravesso a ponte onde os viciados em heroína costumam vender as bicicletas roubadas, e entro no átrio da universidade. O Marco espera-me em frente à porta de vidro deslizante da cantina. Exactamente no sítio em que nos conhecemos há quase um ano, e onde morremos ao dizermos olá pela primeira vez, com o pobre do Vilmo, que estava comigo e morreu por anexo.
- Lara! – exclama, ao ver-me.
- Hi, Marco! – digo-lhe, saltando da bicicleta e indo dar-lhe um abraço. E então o tempo parece voltar a parar. Não sei bem porquê, mas tenho a sensação muito nítida e forte de que algo muito importante está a acontecer, algo de tão eterno como momentâneo. Ficamos abraçados durante duas horas, iria jurar, mas talvez tenham passado apenas dois minutos. Sinto o vento atravessar-nos, e a minha bicicleta cai ao chão.
- Wow! – exclama ele, quando nos largamos. – What’s going on?
- I don’t know. – respondo. – I don’t even know you.
Ele olha-me, sério e sorridente ao mesmo tempo, intensamente.
- Yeap… you’ve changed! – conclui.
- How have I changed?
- I don’t know exactly, but you did. – informa. – Let’s lock your bike and get inside, it’s cold!
- OK.
Tranco a bicicleta com os dois cadeados, e entramos pela porta automática, que desliza para os lados enquanto sorrimos um ao outro.
- Did we die here, when we met each other? – pergunto-lhe.
- What are you talking about? – diz ele, confundido, mas continuando a sorrir.
- Oh, god… I think I’ve lost you. – murmuro.
- Lara, you know you’re saying very strange things, don’t you?
- Yeah, but I can explain everything, don’t worry.
- Oh, I’m not worried. – acrescenta ele. –Even if you would suddenly be totally out of your mind, I’d still love you, that’s for damn sure!
- Thanks. – digo-lhe. – I have so many things to ask you, and to tell you, I guess.
- Yeah, and we have all the time in the world. – comenta. – Ain’t that nice?
- And you talk exactly like before. – comento.
- You mean before you were in some other place for ten days? – pergunta.
- Yeah, for you it’s before that, for me it’s before this dream.
- I see. Wanna eat?
- Yeah, I’ll have the vegetarian dish. Oh, god, the girl we like is there!
- Who? Which girl? – pergunta ele.
- The girl at the check out desk. – respondo. – We used to like her.
- We? – ele ri-se. – Yeah, she’s pretty!
- She’s not just pretty, she’s one of us.
- One of us? – pergunta-me.
- Oh, Marco, this is so painful, I feel like I’m talking to a total stranger!
- I’m not a stranger, Lara, I just don’t know what you’re talking about, but I’m sure you can tell me everything.
- Yeah, but without your mind, without our past, I feel really alone!
- I’m sorry. I just don’t know who I was in that past of yours, but I’m sure we’ll be friends again, now, like we always were, in all the dimensions!
Sorrio-lhe. Disse as coisas certas, como sempre.
- Shall we pay? – acrescenta.
- Yeah, let’s pay.
Dirigimo-nos para a caixa, e a rapariga loura que me fazia lembrar a Mara Palmer sorri-me.
- Hello, Lara. – diz-me ela.
- Oh, how are you? – pergunto-lhe.
- Fine. You’re back. – responde-me.
- Yeah. – digo. – Nice to see you again. I forgot your name.
- It’s Clarity.
- Really? I had forgotten it, I’m sorry.
- That’s no problem. But we should go for a coffee sometime, or something.
- Yeah, we should.
- I still have your number. – diz-me. – I’ll call you.
- OK.
- Have a nice lunch.
- Thanks.
- I didn’t know you knew her! – comenta o Marco, enquanto nos afastamos em direcção às mesas.
- Me neither.
- See? This dimension ain’t so bad at all! - acrescenta ele. - You lost my mind, but you gained a new friend!
- I would prefer to loose all my friends and still have your mind.
Ele olha para mim com um ar surpreendido, e eu calo-me e fico admirada com o que acabei de dizer.
- I don’t know why I just said that. – acrescento, ainda, sentando-me.