O Shine vive
O Shine vive, como na outra vida, no armazém naval ocupado, em frente ao grande canal que separa Amesterdão Norte de Amesterdão Sul, e à ponte que leva à ilha de Java. Pensei que nesta irrealidade ele talvez ainda vivesse com os pais. Mas não. Saiu de casa aos dezoito, tal como na outra existência, e foi morar na Marnixstraat, mais ou menos na altura em que eu encontrei o apartamento na Binnen Vissers, segundo me conta ao pequeno almoço. O Daniel existe. O Shine diz que estive com eles na manifestação contra a guerra do Iraque, a dançar samba. Que estive com eles na ocupação do armazém, faz agora mais ou menos um ano. Que nadei com eles no grande canal, que fizemos churrascos no telhado do enorme prédio, que vieram os bombeiros ver onde era o fogo, e que depois ficaram ali a beber cerveja connosco e a apreciar aquela vista maravilhosa. Que trabalhei atrás dos bares nas festas e concertos das caves iluminadas por velas do armazém, que ouvimos Johnny Cash à volta duma fogueira em frente ao grande canal, na noite do Solstício de Verão, e que depois levámos os colchões para o telhado do armazém, e ficámos a falar até ao nascer do Sol do dia mais longo do ano. O Johnny Cash morreu nesse Verão. O Shine diz que foi comigo a Portugal, diz que ficámos em casa do meu irmão Marco, na Penha de França, e que o meu primo Rio voltou para casa da minha tia Nela, para nós podermos ficar no quarto dele. E que, um ano antes, fomos visitar a família dele ao Tenessee, com os pais, com o Kite e com a Agate, e que fomos ao Texas, a uma cidade chamada Austin. Conta-me tudo isto, e eu não me lembro de nada, a não ser do que fiz também na outra vida. Mas gosto que ele me conte o que supostamente vivi neste sonho, visto que é a única maneira de saber quem sou. Pergunto-me se terei diários, para que possa descobrir-me sem ser através das memórias dos outros.
Tenho diários. Ontem os meus pais trouxeram-me a casa pela primeira vez. Ainda não acordei. Passou uma semana desde que despertei no hospital e os meus dias têm sido um mar muito agitado de descobertas incessantes. Sinto-me como uma extraterrestre, embora viva no mesmo planeta que antes. Tenho todos os meus amigos para conhecer, e a mim própria, aos meus pais, à minha irmã, às minhas paixões, à minha casa. A campainha não pára de tocar, e cada visita é uma aventura interminável. Gostava de não ter de comer nem de dormir, para poder ler todos os meus diários, ver todas as minhas fotografias, falar com todos os meus amigos, telefonar ao meu irmão, ir trabalhar, ir ao médico, ir a casa dos meus pais e dos pais do Shine, a casa da Camila e ao hotel ocupado onde vive a Silvana. Parece que vou ficando cada vez mais perplexa com o decorrer dos dias. A surpresa e a confusão não passam, pelo contrário, aumentam. Apenas as tonturas passaram. Não sonho durante as noites. Durmo profundamente e não recordo nada para além de uma grande escuridão. Antes sonhava quase sempre, escrevia livros e livros cheios de sonhos que tinha durante as minhas noites místicas. Sonhava que voava, sonhava com o Shine, com o Saul, com a Silvana, com o nome do Marco. Chamava sempre o seu nome a outra pessoa, por engano, embora soubesse perfeitamente que estava enganada. Na maior parte dos meus sonhos vivia com todos os meus amigos. Com a Camila, com o Vilmo, com muita gente. Por vezes tínhamos que fugir de alguém que nos queria matar. Quase todas as noites sonhava que vivíamos juntos. E que voava. Nadava à rã pelo ar, por cima de campos com flores ou por cima do mar e de grandes precipícios. Agora esse meu mundo noturno simplesmente desapareceu. Mas, ao que parece, também sonhava neste sonho, pois encontrei livros de sonhos que escrevi antes do acidente. Não consigo, no entanto, encontrar nenhum dos meus livros sobre a Lara e sobre a Alice. Nem o primeiro sobre os tempos do liceu, nem o segundo sobre o Roque, nem o terceiro sobre Amesterdão, nem o quarto sobre o futuro. Se ficar neste sonho muito tempo, posso voltar a escrevê-los. A Verónica, pura e simplesmente, não existe. A psiquiatra dos rastas louros e compridos diz-me que tenho um distúrbio da despersonalização, e que este se caracteriza por uma percepção distorcida da identidade, do corpo e da vida, e pela sensação do mundo ser irreal ou ser um sonho. Explica-me que este distúrbio é o terceiro sintoma psiquiátrico mais comum a seguir à ansiedade e à depressão, embora tenha sido pouco estudado isoladamente. Diz-me que ocorre normalmente após o indivíduo passar por um perigo potencialmente mortal, tal como um acidente, um assalto, uma doença, ou uma lesão grave. Os sintomas tanto podem ser temporários como persistirem ou retomarem durante muitos anos. Podem surgir juntamente com ansiedades e pânicos, ou serem ajustados e até bloqueados de modo a perderem o impacto. Podem atormentar-me ao ponto de eu sentir que enlouqueço, ou podem simplesmente desaparecer sem qualquer tratamento. Receitou-me calmantes, e a continuação das consultas com ela e com os seus rastas absolutamente irreais. Disse-me que preciso manter-me o mais serena possível, devido a todas as coisas que o meu cérebro acredita estar a conhecer pela primeira vez, e que me estimulam e confundem demasiado. Eu disse-lhe que vou continuar a acreditar em mim própria, e a ter a certeza de que estou a sonhar. Ela respondeu-me que desde que eu me sinta bem, apesar de confusa e excitada, posso acreditar naquilo que eu quiser. Eu respondi-lhe que tudo isto não passa de uma grande aventura.
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