laralice in wonderland

sobre os meus livros. fotos de don key shot, aqui-ali, minhas, e de websites sobre river jude.

terça-feira, março 08, 2005

Dia seguinte

Dia seguinte. Acordo na cama do Rio e posso ouvir todo o barulho matinal de carros e pessoas na agitada rua, enquanto a Gata se espreguiça deliciada e morna entre as minhas pernas, brilhando branca sob os raios de sol que penetraram as persianas. Procuro um vestido de alcinhas no meu saco de viagem, calço as sandálias, e saio de casa. O céu está azul e faz calor. Há muito barulho no mercado de Sapadores, cheiro a peixe, autocarros a poluir o ar e gente pequena vestida de cores escuras, caminhando nos passeios, com sacos de compras dos supermercados. Velhotes de bengala, viúvas com netos pela mão, adolescentes tentando diferenciar-se da persistente igualdade provinciana da cidade pobre, e gatos vadios por baixo dos carros estacionados. O eléctrico vinte e oito sobe a Angelina Vidal e segue a caminho da Graça, quando eu atravesso a estrada por cima da passadeira e agradeço ao condutor do táxi que civicamente me deixa passar. Esse eléctrico que provavelmente não faz uma viagem sem a atribulação causada por algum carro mal parado em cima da linha, numa curva ou isso, causando um ataque de nervos ao condutor e os comentários salazaristas dos velhotes contorcidos e mal dispostos, enquanto que a geração nova e apática fica a olhar sem proferir opinião. E por fim são os velhotes tortos e resmungões que se levantam esquecendo a bengala no banco, e vão em grupo içar e deslocar ligeiramente o carro refratário com uma força vinda não se sabe de onde, após o que voltam a entrar no eléctrico cheios de adrenalina e alegria vitoriosa. A geração apática não esboça um sorriso e aconchega-se na timidez excessiva que a impediu de se expressar em primeiro lugar, e o transporte público lá segue caminho para chegar quarenta e cinco minutos atrasado ao seu destino.
Entro na pastelaria onde costumava sentar-me a escrever nas manhãs da dimensão anterior, e peço um galão e um bolo. Olham-me com o mesmo ar descrédito de antes. Há coisas que nem nos sonhos mudam. Nesta irrealidade tenho um ar menos estranho, mas eles não se importam. Continuo hippie, com os meus cabelos despenteados e o meu vestido de Verão comprido e às flores. Cabelos desgrenhados é coisa que não se admite, pois não se entende. Mas parece-me que esta é a pastelaria mais peculiar que conheço, pois não me lembro das outras serem tão fechadas no seu próprio mundo, com empregados que mal proferem palavra ou dirigem olhares. Talvez sejam todos fantasmas aborrecidos. Um senhor fuma na mesa ao lado da minha e lê o jornal. A televisão, quase pregada no teto, mostra notícias de gente a queixar-se de faltas públicas, acidentes, e ainda o eterno e aterrador assunto da pedofilia. Uma senhora entra no café com lágrimas nos olhos e dirige-se ao senhor que fuma e lê o jornal ao meu lado. Põe-se a dizer-lhe que ele não quer saber, que está farta e cansada, que isto assim não pode continuar. Ele continua a fumar e a ler o jornal, sem olhar para ela. Toda a gente no café finge que não viu nada, e a senhora vai-se embora. Saio novamente para a linda manhã cheia de sol, após pagar a minha conta à empregada da caixa, que apenas me diz obrigada por eu ficar calada a olhar para ela. Já sei que se eu lhe digo obrigada ela não diz nada. E de seguida dirijo-me para casa do Noel.