laralice in wonderland

sobre os meus livros. fotos de don key shot, aqui-ali, minhas, e de websites sobre river jude.

quinta-feira, março 10, 2005

As aulas acabaram

As aulas acabaram. É Santo António e há uma festa na Padaria do Povo, à noite. Vou buscar a Laura a casa, ela está sozinha, e diz-me para entrar. Sorri com um ar entusiasmado:

- Tenho aqui um haxixe libanês que quero que experimentes comigo.
- A sério? É bom?
- Deve ser.
Então sentamo-nos frente a frente, de pernas cruzadas, no meio do chão da cozinha iluminada, e a Laura enrola o charro. Fumamos. O efeito é quase imediato e tão inesperado como quando subia as escadas do meu prédio e fiquei na dúvida se estava a sonhar. Como se de repente a cozinha, e nós, passássemos a outra dimensão. Então a Laura diz-me:
- Tive agora a sensação muito forte de que já vivi este momento.
- Quando?
- Não sei, talvez nunca, talvez a sensação seja de que este momento é suposto acontecer.
- Estou a ficar arrepiada, Laura!
- Não tenhas medo, Alice. É uma sensação boa, como se esta noite fizesse parte de uma história maior.
- Como as histórias dos nossos livros?
- Sim, como se o teu livro da levitação e meu livro nuclear já tivessem sido escritos, assim como tudo sobre a Lista E e o Festival da Paz.
- Por quem?
- Não sei. Talvez por nós, por outros, pelo Michael Ende.
- Não estou a perceber.
- Eu também não percebo completamente, mas não é preciso, porque a sensação é tão forte!
- O que é que sentes?
- Sinto que já vivemos este momento, ao mesmo tempo em que o estamos a viver e que o vamos viver novamente.
- Como se o passado, o presente e o futuro fossem só um?
- Talvez. É como uma espiral que gira, gira, e nunca tem fim.
- E deixa-me tonta.
- Mas não faz mal, pois não temos que pensar sempre nisto. E sabes o que é o melhor de tudo?
- O quê?
- É que como a nossa história está sempre a ser rescrita e revivida nós próprias podemos modificá-la.
- Então porque é que não somos felizes?
- Acho que é por causa do Nada.
- E o Nada é o quê?
- É o medo.
- Será que o medo é preciso?
- Talvez seja, para que os homens entendam como é importante viver.
- E o que é que sentes mais?
- Sinto que há uma pequena janela que se abriu um pouco, e para onde posso espreitar e ver coisas lindas que normalmente não conseguimos distinguir.
- Tais como?
- Tais como alguém que escreve a nossa história, não sei quem, mas que já sabe o que vamos dizer porque já o dissemos antes.
- Quem?
- Não consigo ver, Alice. Mas esse alguém sabe o quanto nos amamos e o quanto nos odiamos. Sabe tudo o que se passou entre nós até agora, e tudo o que se vai passar a partir daqui, porque tudo já aconteceu!
- E esse alguém observa-nos?
- Sim, está connosco neste momento a sentir o mesmo que nós e também já viveu isto antes.
- Então o meu livro já está escrito?
- Já, mas tu vais escrevê-lo outra vez, porque também já está escrito que o vais fazer, porque esta é a nossa própria História Interminável. Entendes?
- Acho que sim. E que mais vês pela tua janela?
- Vejo um mundo paralelo ao nosso, o qual não estamos preparadas para entender completamente, e que por isso só se revela às vezes.
- E esse mundo é perfeito?
- Talvez seja tão imperfeito quanto este, mas ao contrário.
- Do quê?
- Do nosso, tal como se fosse o outro lado de um espelho.
- E nós vivemos lá também?
- Sim, e estamos sentadas, neste momento, numa cozinha, a falar sobre o mesmo assunto ao contrário.
- O que é que dizemos?
- Dizemos que somos tão felizes que não conseguimos imaginar que haja o outro lado do espelho.
- Onde há medo.
- Sim, e os dois mundos, no fundo, completam-se.
- E achas que a Ema, a Sara, o David, o Levi e todos os nossos amigos vão pensar nisto um dia?
- Talvez, quando estiverem preparados.
- Vamos contar isto a alguém?
- Acho que é melhor não.
- Algumas pessoas estão mais próximas do que outras dessa janela, não achas?
- Acho que sim. E outras já estiveram mais perto e depois voltaram a afastar-se.