O David
O David é engraçado. Já não me lembrava de como era louco e inventivo. Chegou um tanto apático, e fez-me impressão ele estar assim. Não consigo fingir que está tudo bem quando algo me incomoda e as pessoas envolvidas são capazes de o entender. Quero dizer, não vou dizer à minha avó que ela fica nervosa muitas vezes desnecessariamente. Ela tem noventa anos. Nem vou dizer-lhe que o Cristianismo é uma religião inconsciente de propósitos esquecidos, como tantas outras. Pelo contrário, levo-a à missa, recordo a minha infância, e tento perceber o que há de simbólico na celebração da vida em torno da adoração de um Deus. Tento decifrar a origem da lógica. Acabo por concluir que ir à missa é o mesmo que ir a uma festa transe. As pessoas apenas querem unir-se, dar e receber amor, sentir as energias do Universo, de si próprias, e purificar-se. Comer a hóstia é o mesmo que tomar um ácido. A religião é uma inevitável condição humana. Não acreditar em nada é acreditar que não se acredita em nada. Mas, ao David, digo-lhe:
- Estás a meter-me impressão, pareces um atrelado!
Ele fica ofendido. Quer ir-se embora. É verdade que sou bruta. Mas tenho a mania de não ser hipócrita com os meus amigos. Se são meus amigos, trato-os como pessoas inteligentes e não como flores frágeis e sem entendimento. Eles magoam-se. Mas pelo menos sentem sempre a verdade e não a ilusão do meu amor. Explico-lhe:
- Não decides nada, David! É como se não estivesses cá mas estás, e tenho que andar a puxar-te para todo o lado. Para filhos já me chega a Luna, percebes?
- Sim, é verdade, Alice, mas não me sinto bem. Tenho andado assim ultimamente, e não tem nada a ver contigo.
- Desculpa, David, se te pus triste, mas se não te dissesse isto não me sentia sincera. Não tenho muito jeito para estas situações.
No dia seguinte tudo melhora, e ele volta a mostrar-me como é interessante, original, tresloucado e amadurecido. Já não somos adolescentes, por incrível que pareça tornámo-nos adultos, mas continuamos a ser crianças. Ele faz-me rir. Vamos passear pelos canais e reciclamos um colchão enorme. Este parece ter quatro pernas e caminhar lentamente pelas ruas quando o transportamos para minha casa. Lembro-me do dia em que fomos ao supermercado com a Laura buscar caixas de cartão para a festa de Natal do liceu, e ele parecia uma pilha de cartões com pernas. Levo-o a Gaasperplas e nadamos no lago enorme e pantanoso, de água doce e lamacenta. Pensamos na Laura, e em como ela se sentiria se estivesse connosco nesta terra de sonhos. Ele lê os meus livros durante as noites, e sente-se tão inspirado que quer escrever a sua própria versão da nossa história. De manhã diz-me:
- Podia usar os mesmos nomes que tu!
- Era lindo! – respondo. – Subitamente montes de livros sempre a relatarem as mesmas coisas de modo diferente, e os mesmos nomes esquisitos a repetirem-se constantemente, como se fossem os nomes mais típicos do dicionário onomástico português!
Rimo-nos. Imaginamos. Sonhamos. Sempre tivémos a capacidade de sonhar juntos. Digo-lhe:
- Já sei porque é que ficámos amigos todos estes anos.
- Porquê? – pergunta-me.
- Porque nunca deixámos de sonhar.

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