laralice in wonderland

sobre os meus livros. fotos de don key shot, aqui-ali, minhas, e de websites sobre river jude.

terça-feira, janeiro 02, 2007

dreaming

segunda-feira, janeiro 01, 2007

Ainda não me tinha lembrado que se calhar estou morta

Ainda não me tinha lembrado que se calhar estou morta. Ainda não havia pensado nesta possibilidade, nem mesmo quando falei com o Marco sobre o Verão passado, sobre o modo como nos conhecemos e depois concluímos que devíamos ter morrido no momento em que dissemos olá, pois a partir daí tudo o que nos aconteceu foi sempre demasiado perfeito e coincidente, como num sonho. Talvez seja o que me aconteceu agora. Voltei a morrer. Voltei a entrar noutra dimensão, assim como quando eu e o Marco e o Vilmo demos um passou-bem pela primeira vez e caímos ao chão, numa realidade, e continuámos a andar sem dar por nada, na seguinte. Talvez morrer seja isso, como eu e o Marco pensámos na primeira tarde da nossa conversa de três mil anos. Talvez passemos constantemente de uma vida para outra, sem nos apercebermos, ou notando apenas algumas coisas estranhas, em grande parte reveladas nos sonhos. Coisas demasiado subtis ou que estamos demasiado habituados a ignorar. Coisas que passam despercebidas na rapidez desalmada com que vivemos os nossos dias, na descrença em relação ao nosso instinto, ao nosso inconsciente, e a tudo o que não se pode provar facilmente, ou que apenas se sente. O Saul zangava-se comigo cada vez que eu falava destas coisas, na dimensão anterior. Replicava:
- O que é que isso interessa? Isso não vai tornar toda a gente vegetariana, nem vai mudar o mundo!
E eu não conseguia explicar-lhe que uma grande expansão da consciência universal poderia causar o milagre que ele esperava antes da auto-destruição do planeta. Eu não conseguia explicar-lhe que há coisas quase impossíveis de explicar, mas que se sentem e nas quais residem talvez outras soluções para juntar às acções directas dos guerreiros da liberdade. Eu não conseguia explicar-lhe que o amor e a arte são tão revolucionários como o ódio e a guerra. Ele dizia-me:
- Não há tempo!
Talvez não. Nunca chegámos a um entendimento. Ele odiava os humanos e a irrealidade. Eu amava o amor e os sonhos.

segunda-feira, dezembro 25, 2006

Saul

domingo, dezembro 24, 2006

A minha mãe está cada vez mais doente

A minha mãe está cada vez mais doente. Não quer ir ao médico. Diz que não quer descobrir que tem qualquer coisa horrível. Ela e o Luca vão mudar-se para um quarto no hotel onde eu trabalhei no Verão, e a Luna vem comigo para um centro de abrigo durante o fim de semana, e depois para uma casa de freiras no meio do Bairro Vermelho. Estou assustada. Sinto-me terrivelmente sozinha e a minha vida parece uma anedota, um pesadelo, um filme dramático. Mas, simultaneamente, a magia não cessa. A sorte acompanha-me, estranhamente acompassada com o acaso e com os limites do abismo. Sigo um rumo inconsciente que parece já estar traçado, e deixo-me flutuar. Mas tenho medo. Uma espécie de pânico incrédulo e indefeso. Deixo-me flutuar porque não posso fazer absolutamente mais nada. E assim, ao mesmo tempo, no meio de um vazio assustador, sinto uma paz de loucura. Na última noite antes de ter que sair de casa do Carel, ando com a Priscila aos berros pelas ruas escuras, ambas a cantar It’s a wonderful world, do Louis Armstrong. Parecemos duas adolescentes felizes e embriagadas, despreocupadas, alegres. Mas carregamos nos ombros pesos invisíveis do tamanho do mundo.

sábado, dezembro 23, 2006

A minha mãe está doente

A minha mãe está doente, não sabe o que tem nem quer saber. Só sabe que tem medo. O Verão está quase a terminar e os dias estão frios. O tio do Carel mandou-lhe uma carta a dizer que se nós não sairmos do prédio em quinze dias chama a polícia.

- Tens que ir para Portugal e levar a Luna. –diz a minha mãe. - Tens que pedir ao teu pai que te ajude.

- Nem penses. – respondo-lhe. – Quando saí de casa foi para nunca mais voltar.

- Então pede ao Romão que te ajude. Ele é o pai da Luna.

- Também o deixei a ele. Não volto atrás.

- E nesse caso vais fazer o quê, podes dizer-me?

- Não sei.

- Eu e o Luca vamos viver no hotel onde tu trabalhaste, não temos dinheiro para tomar conta de ti e da Luna, tu já não nem tens emprego, como é que te vais sustentar?

O meu estômago contrai-se e os meus olhos começam a ficar cheios de lágrimas. Viro-lhe as costas sem lhe responder. Desço as escadas e saio. Faz um sol morno de princípios de Outono, e olho para a minha longa sombra enquanto caminho sem destino, ao longo do canal ao fim da rua. Hoje não tenho dinheiro nem para comprar fraldas para a Luna. As lágrimas saltam-me dos olhos e tenho que me sentar na entrada de um prédio com a cara escondida entre os braços. Choro. Não sei que mais fazer. A Priscila também foi despedida porque acabou o Verão e não há turistas. Ela vive em quartos de hotel com o namorado e não me pode ajudar. A minha mãe está doente e assustada, o Luca não tem dinheiro para comermos. O Carel não consegue convencer o tio a deixar-nos ficar no prédio. E então ouço:

- Hello, beautiful girl, why are you crying?

Olho para cima e vejo dois viciados em heroína a sorrirem-me com um ar interessado.

- I don’t have money to buy diapers for my baby.– respondo-lhes.

- Oh, don’t worry, we can help you! – dizem-me. – We can take you to a hospital, they will give you some diapers! Wanna come with us?

- OK. – aceito, e levanto-me. Eles sorriem-me, contentes não sei bem com o quê. Devem ser os dois viciados em heroína mais felizes e energéticos que já vi. Levam-me até à Estação Central, onde apanhamos o metro sem pagar. Saímos quatro paragens depois, em Wibautstraat, e andamos um pouco até ao hospital. Eles entram, comigo atrás, sem perguntarem nada a ninguém e põem-se a percorrer corredores como se fossem enfermeiros. Levam-me à secção dos bebés, e então encontram uma enfermeira pelo caminho e pedem-lhe fraldas. Ela olha-nos com um ar um tanto indefeso, e diz:

- I’m not sure I’m suppose to give you diapers, you know?

- Yes, - diz um dos toxicodependentes – but our friend needs them for her baby, she has no money, you can help us, can’t you?

Então ela vai buscar umas cinco fraldas e dá-nos, ainda pouco convencida.

- Now please go away. – pede.

- Thank you! – agradecem os toxicodependentes, e saímos dali. – Now let’s get more diapers at some other hospital!

Eu sorrio finalmente nesse dia, e digo-lhes:

– I think this will be enough for today. Tomorrow my mother’s boyfriend will have some money for shopping.

- What about food? Are you hungry? Do you have food for your baby?

- I have food for Luna, but I could eat something.

- So come with us, beautiful girl, we’ll take you to a place where you can eat!

- OK.

E desta vez apanhamos um eléctrico, também sem pagar. Levam-me até uma rua onde nunca estive, com um grande graffiti da cara de uma mulher numa parede. Andamos uns cem metros e entramos num centro social, onde há mais gente com ar de toxicodependente ou de sem abrigo, sentada em sofás ou nas mesas por ali espalhadas. Há uma televisão na parede a transmitir a MTV. Atrás do bar perguntam-me se quero café ou chá, e quantas sandes. Peço uma sandes de queijo e um café com leite e açúcar. Os meus dois amigos viciados em heroína dizem-me que vão andando e desejam-me boa sorte.

- Thank you very much for everything! – agradeço-lhes.

- It’s fine! A beautiful girl like you shouldn’t cry! – responde-me um deles, e vão-se embora.

Fico a comer o meu pão com queijo, e a olhar para a televisão. Começa a dar um vídeo dos Guns & Roses. Eles cantam “Don’t you cry tonight, there’s a heaven above you, baby!” e eu volto a ter vontade de chorar, porque penso que aquela música toca naquele momento especialmente para mim.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Sand, Sea, Sun, Star, Sky, Love e Tom Summer

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Micanopy

A Sea preparou o chá e bebemos. Explicou-me que aqueles cogumelos não sabiam tão mal como os outros, mas eu nunca comera nenhum. O chá tinha um sabor predominante a mentol. Depois partimos no descapotável laranja para o pântano. Pelo caminho comecei a sentir–me mole e feliz, e as cores do dia e dos objectos, das nossas roupas e cabelos, de toda a paisagem, tornaram-se mais apelativas, como se antes nunca tivesse reparado devidamente nelas. A Sea guiava, eu ia com ela à frente, e o Sand estava sentado atrás. Quando olhei para ele os seus cabelos esvoaçavam com a velocidade do carro e com o vento, e ondas de cor amarela libertavam-se deles e ficavam a pairar no ar, por cima da estrada, até desaparecerem na distância. Ri-me. Depois imaginei que viajámos dentro de uma abóbora, a qual se deslocava rapidamente a caminho de outra dimensão, soltando um rasto laranja. Não tive muito tempo para me aperceber do que se estava a passar. Senti que entrávamos noutro mundo, que sempre existira à nossa frente, mas o qual não se revelava se não lhe prestássemos a devida atenção. Um mundo paralelo ao nosso. A dimensão em que vivem as crianças e as fadas. De dentro do mais profundo ser do Sand emergiu uma criatura bela que me fez lembrar um elfo, e os cabelos da Sea tornaram-se azuis por cima do seu vestido feito de mar. As cornucópias e flores do meu lembraram-me que eu fora em tempos uma bruxa japonesa da floresta, com longos cabelos negros, que agora retomava ao momento. E a abóbora deslocava-se rapidamente com nós os três lá dentro. Depois o Sand pôs os óculos escuros e havia algo de mosca nele. Uma mosca loura. Porque não? A própria Sea podia perfeitamente ser uma borboleta de tons azuis e asas transparentes, e eu uma espécie de besouro coberto de folhas e flores. Todos a viajar numa abóbora. Fazia perfeito sentido.

Quando chegámos ao pântano o tempo parou de repente, e a Sea e o Sand mexiam-se demasiado rápido, cada vez mais como se de insectos se tratassem. Então senti-me um tanto perturbada e confusa, sem calma suficiente à minha volta para me aperceber do desenrolar dos eventos. O Sand reparou no meu ar imóvel e perguntou-me:

- How do you feel?

- Please stop moving so fast. – pedi-lhe. E depois ri-me e exclamei: - You look so much like a fly!

- Oh, shit! – comentou ele, sorrindo. – You’re already tripping!

E por essa altura eu já não conseguia parar de rir. Tudo me parecia hilariante. A expressão semi-sorridente do Sand com uns enormes olhos de mosca, a Sea a vir ter comigo com o seu vestido cheio de ondas a rebentarem em espuma e os seus cabelos emaranhados como se fossem algas, a nossa abóbora estacionada e cansada daquela viagem tão rápida através das dimensões e eu, confusa e desejosa de uma pausa para o entendimento no meio da velocidade dos acontecimentos, sem conseguir parar de rir ou ter qualquer poder de decisão.

- Are you feeling OK? – perguntou-me a Sea.

- Everything is too fast! – respondi-lhe. – And, at the same time, so slow!

- It’s all right, Lara. – disse-me. – Just enjoy it. We’re all together. You’ve just entered another perception. It’s beautiful, don’t you think?

Disse-lhe que sim e deixei de me preocupar com os ritmos alterados e com a necessidade de controlar fosse o que fosse à minha volta ou dentro de mim, mesmo o facto de continuar a rir, sozinha, sem já saber porquê. Tudo estava bem. Pegámos na cesta que a Sea preparara com fruta e água, e afastámo-nos da nossa abóbora a caminho do pântano.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Tive agora a sensação muito forte de que já vivi este momento

- Tive agora a sensação muito forte de que já vivi este momento.
- Quando?

- Não sei, talvez nunca, talvez a sensação seja de que este momento é suposto acontecer.

- Estou a ficar arrepiada, Laura!

- Não tenhas medo, Alice. É uma sensação boa, como se esta noite fizesse parte de uma história maior.

- Como as histórias dos nossos livros?

- Sim, como se o teu livro da levitação e meu livro nuclear já tivessem sido escritos, assim como tudo sobre a Lista E e o Festival da Paz.

- Por quem?

- Não sei. Talvez por nós, por outros, pelo Michael Ende.
- Não estou a perceber.

- Eu também não percebo completamente, mas não é preciso, porque a sensação é tão forte!

- O que é que sentes?

- Sinto que já vivemos este momento, ao mesmo tempo em que o estamos a viver, e que o vamos viver novamente.

- Como se o passado, o presente, e o futuro fossem só um?

- Talvez. É como uma espiral que gira, gira, e nunca tem fim.
- E deixa-me tonta.

- Mas não faz mal, pois não temos que pensar sempre nisto. E sabes o que é o melhor de tudo?

- O quê?
- É que como a nossa história está sempre a ser reescrita e revivida, nós próprias podemos modificá-la.
- Então porque é que não somos felizes?

- Acho que é por causa do Nada.

- E o Nada é o quê?

- É o medo.

- Será que o medo é preciso?

- Talvez seja, para que os homens entendam como é importante viver.

- E o que é que sentes mais?

- Sinto que há uma pequena janela que se abriu um pouco, e por onde posso espreitar e ver coisas lindas que normalmente não conseguimos distinguir.

- Tais como?
- Tais como alguém que escreve a nossa história, não sei quem, mas que já sabe o que vamos dizer porque já o dissemos antes.

- Quem?
- Não consigo ver, Alice. Mas esse alguém sabe o quanto nos amamos, e o quanto nos odiamos. Sabe tudo o que se passou até agora, e tudo o que se vai passar a partir daqui, porque tudo já aconteceu!
- E esse alguém observa-nos?

- Sim, está connosco neste momento, a sentir o mesmo que nós, e também já viveu isto antes.

- Então o meu livro já está escrito?
- Já, mas tu vais escrevê-lo outra vez, porque também já está escrito que o vais fazer, porque esta é a nossa própria História Interminável.


Encosto-me para trás na cadeira e toda a minha pele se arrepia. Fico a olhar para o que acabei de escrever, estupidificada. O meu estômago contorce-se, e volto a sentir o mesmo que senti na cozinha da Laura, há tantos anos. Excepto que agora percebo ao que ela se referia, e a sensação é mais forte ainda. Ela falou-me, naquela noite, simultaneamente, em todos os tempos. A pessoa que estava connosco, que escrevia a nossa história e sabia tudo o que ia acontecer, porque tudo já tinha acontecido, era eu. Sou eu agora, ao descrever a nossa conversa, e sou eu que sei tudo o que se vai passar a seguir, porque tudo já aconteceu. A Laura descobriu um buraco no tempo, e falou comigo do passado para o futuro, e no presente dos dois tempos em simultâneo. Foi por isso que sentimos, então, que descobríramos algo magnífico, e que a espiral infinita das histórias intermináveis nos atordoou e encheu de uma qualquer beleza misteriosa.

A partir daí comecei a desconfiar que vivíamos todos os tempos sincronicamente, e que quem me observava era a eu a mim própria, do futuro para o passado, quando recordava a minha imagem sentada à beira do lago enorme e pantanoso, de cabelos ao vento, a sentir-me observada. Percebi que a história do meu primeiro livro começara realmente em frente a esse lago nórdico, quando ouvia Pink Floyd através dos auscultadores portáteis, e me lembrava do Roque numa aula da segunda classe, e dos meus desejos numa tarde de sol. Aquela música, The Gunners Dream, relatava o momento exacto que eu vivia. As memórias desciam através das nuvens para me encontrarem, e no espaço entre o céu e a esquina de um campo estrangeiro, eu tive um sonho. Um sonho que se realizou a partir desse momento, mas numa dimensão diferente da desejada. E, se reparamos bem, talvez seja isso que acontece com todos os nossos desejos.

quarta-feira, novembro 30, 2005

MOJAVE

A Mara e o Kiro vão buscar-me ao aeroporto. Ele tem o cabelo rapado em certas partes da cabeça e noutras não, para o filme que está a fazer com o Sand. Parece um louco. Mas como é bonito até um penteado destes lhe fica bem. A Mara veste umas calças de algodão justas às flores e uma camisola de malha branca por cima. Dizem-me que o Sand vai ter connosco ao deserto, e metemo-nos no jipe do Kiro.
A festa começou, ao que parece, à tarde. O Sand já lá está e alguém nos diz para o procurarmos perto da piscina. Pelo menos não há muita gente, a casa não parece um palácio, e a música não está tão alta como de costume. Não há ninguém a servir bebidas. Parece ser uma reunião mais calma. O Sand vê-nos e vem ao nosso encontro. Beija-me e agarra-me num abraço longo, depois pega em mim ao colo e faz-me girar no ar. Está drogado. Olho para a Mara e ela faz-me sinal de que não há problema. O jantar é estilo
self service e tenho fome, por isso vou ver o que se pode comer. O Sand não me larga e vai comigo para todo o lado. Encho um prato com salada e lasanha vegetariana, e tiro champanhe do gelo. Depois vamos sentar-nos ao pé da piscina. A Mara e o Kiro desapareceram. Como e sinto-me menos cansada, e o champanhe começa a fazer efeito. O Sand vai buscar mais. Depois pergunta-me se foi bom ter confiado nele quando tomámos os cogumelos alucinogénios. Respondo-lhe que sim. Então diz-me que agora tenho que confiar nele outra vez, e dá-me um comprimido verde claro.

- What’s this? – pergunto-lhe.

- It will make you feel good. – explica-me.

- I don’t like drugs so much, Sand, you know that. – digo-lhe.

- How do you know you don’t like them if you don’t try them? – replica.

- But what is it?

- It’s an upper.

- I don’t want it. – digo, devolvendo-lhe o comprimido.

- Please, Lara, do it. Why can’t you trust me? Do you think I’d ever give you anything that would hurt you?

- No, I don’t. – respondo.

- So what’s the problem? Let’s just have fun together!

Pego no comprimido e ponho-o na boca. Depois dou dois golos no champanhe e espero não me arrepender. Ele sorri e diz-me:

- Welcome to my little world of wonder!

Toca The Doors, e não pára de chegar gente à festa. Começo a ver caras conhecidas, cada vez mais, e penso que preferia não estar ali. No entanto as pessoas estão calmas, embora sorridentes, e a música está bem escolhida para a ocasião. A Mara e o Kiro voltam, agarrados, divertidos, também a beber champanhe, que parece ser a bebida da noite. Sentam-se ao pé de nós e outras pessoas vêm dizer-lhes olá. Reconheço um rapaz que já vi várias vezes em filmes com o Sand e com a Mara. Faz-me lembrar o Jonas. Tem uma voz cativante, e o seu sotaque agrada-me. Fuma um charro de erva que daí a pouco me vem parar à mão.

- Careful. – avisa. – It’s strong stuff. – engasga-se. – From Amsterdam.

- Thanks. – agradeço.

- My name is Corry. – apresenta-se.

- I’m Lara. – sorrio-lhe. Já sabia o seu nome. Fumo um pouco do charro, depois passo-o à Mara, que me manda um beijo pelo ar e também está drogada. Começo a sentir umas contrações agradáveis no estômago, e encosto-me ao Sand, que me agarra enquanto fala com o Kiro. Este último está com um ar cada vez mais alucinado. Eu fico com uma súbita vontade de falar, e peço um cigarro ao Corry. Ele diz-me que não fuma, só charros, mas que tem pena, porque acha que fumar deve ser óptimo.

- So why don’t you start smoking? – pergunto-lhe. E outro rapaz, lindíssimo, que também conheço dos filmes e está sentado ao lado do Corry, oferece-me um cigarro.

- Oh, thank you so much! – digo-lhe, com um grande sorriso, e as contrações no estômago são cada vez mais fortes, especialmente quando ele me acende o cigarro e começo a fumar.

- My pleasure. – responde o rapaz, com a sua voz meio rouca.

- Because, I don’t know. – diz o Corry, ainda sobre os cigarros. – I just never did. I guess ‘cause I also find it kinda stupid.

- Well, it’s really nice. – digo-lhe.

- Yeah, right now especially. – acrescenta o outro rapaz, que de seguida se vira para mim e se apresenta:

- I’m Kris.

- I’m Lara. – digo-lhe. - Good to meet you. – depois acrescento, olhando para o Corry e apreciando o cigarro que fumo:

- Although smoking is stupid.

- I think you should try it. – opina o Kris.

- You should. – digo ao Corry.

- Line? – pergunta uma miúda, que deve ter uns quatorze anos e é mais famosa do que todos eles juntos. Trás consigo um espelho com o que penso serem algumas linhas de cocaína, preparadas para cheirar. O Sand responde-lhe: - Yeah! – e pega no espelho. A rapariga senta-se, passa-lhe um pequeno cilindro de metal, e ele utiliza-o para cheirar uma linha. Depois passa o espelho à Mara.

- Thanks, Darla! – agradece o Sand. Ela ainda se parece muito com a menina que era no filme que a fez famosa. Sorri e é realmente bonita, tem uma cara rechonchuda e uma boca de bebé. A Mara cheira uma linha e passa-me o espelho. Eu agradeço, mas digo-lhe que não quero.

- Please, Lara. – pede-me o Sand ao ouvido. Estivémos sempre agarrados, enquanto ele falava com o Kiro e eu com o Corry e com o Kris.

- But I feel fine. – respondo.

- I have an idea! – diz o Corry.

- What? – pergunto-lhe, sorrindo e terminando o meu delicioso cigarro.

- If you take a line, I’ll smoke a cigarette!

- Seams like a good deal. - concorda o Kris.

A Mara sorri e pisca-me o olho:

- It’s cool, Lara.

- All right, I’ll do it. But what is it?

- Coke. – responde-me o Sand.

Inalo uma linha e a sensação no nariz é fresca. A cocaína cheira a remédio. O Kris dá um cigarro ao Corry, este põe-no na boca, fica com um ar tremendamente sensual, e eu passo o espelho ao Kiro, que também agradece, mas não quer. Então devolvo-o à Darla, e ela está a acender o cigarro do Corry, a rir-se, e a dizer:

- You definitely look good with it in your mouth!

A sensação de frescura da cocaína começa a descer pela minha garganta, e o meu nariz parece ficar dormente. O Corry também cheira uma linha. Peço outro cigarro ao Kris. Ele dá-me, e digo-lhe que quero ser eu a acendê-lo porque me apetece mesmo acender um cigarro.

- Sure, Lara, never worry. – e passa-me o isqueiro.

- Thanks, Kris.

Acendo o cigarro e sabe-me ainda melhor que o outro. Pergunto ao Corry:

- How’s yours?

Ele responde-me:

- Delicious!

- Just like mine. – concordo.


terça-feira, agosto 23, 2005

No último dia da conversa dos três mil anos

No último dia da conversa dos três mil anos temos que devolver o vídeo do Waking Life até às sete horas. Faz sol e vamos deitar-nos em Waterlooplein, no largo em frente ao prédio da ópera, numa espécie de arena sem propósito definido.

- How do you fly in your dreams, Marco? – pergunto-lhe.
- I start going up, until I reach the sky, and then I wake up. – responde-me. – Just like the guy in the film. It’s like I loose contact with gravity, you know? And you?
- I swim in the air. – digo-lhe. – I jump from high places and then move my arms and legs as if I’m in the water. Do you think the guy in the film woke up in the end?
- Yeah, and died!
- I personally think he was dead already.
- Yeah, it could be. But he didn’t know it.
- So you think when he woke up from the dream he finally realized he was dead?
- Yeah, I guess. Have you ever thought that the sky, in this case, is just like the surface of the sea? Just like when we’re swimming and being pulled up?
- Wow! I never thought of that!
- Me neither! But
its true, isn’t it?
- Yeah! And have you ever thought that Amsterdam is under water, and constantly surrounded by clouds? It’s the absolute dream land! Everything makes so much sense, doesn’t it?
- Sure does! And the more we talk and think about it the more coincidences we keep on finding! It just never stops!
- But where does it take us?
- I have absolutely no clue.
- Do you think if we woke up from this dream we would die?
- I think maybe we’re already dead, and that’s why all this is happening.
- Oh, that would be an explanation!
- Yeah, maybe we died when we met. I mean, after that it all started getting stranger and stranger, right?
- Yeah! Maybe we just collapsed at the door from the cantina when we said hello for the first time and walked straight into another dimension without noticing it!
- It could be! It would explain why everything is so much like a dream lately!
- That’s it, we’re dead! – digo.
- Yeah!
Um amontoado de serpentinas passa por nós, rolando na estrada, e vai agarrar-se a uma árvore, com o vento a bater-lhe. Uma mãe empurra a filha num carrinho de brincar com umas grandes rodas, entram na arena onde estamos sentados, e parece que começam a desaparecer pelo chão.
- Alice, it’s too much! – diz o Marco. – It just goes on and on and on, doesn’t it?
- Yeah, it’s even too fast! We don’t have the time to notice everything!
A arena tem a forma de um anel gigante, o qual parece ter caído e paralisado a meio do movimento giratório antes de pousar no chão, e a mãe e a filha voltam a surgir na parte baixa, após terem estado encobertas pela parte elevada. Quando me mexo, outro amontoado de serpentinas, igual ao que passou por nós há pouco, desprende-se repentinamente das minhas costas e eleva-se com grande velocidade no ar até bastante alto. Eu assusto-me e dou um grito.
- Wow! What happened? – pergunta o Marco.
- The shreds were stuck to my back and when I moved they flew away!
Ficamos os dois maravilhados a olhar para as serpentinas coloridas, que voam cada vez mais alto pelo céu , até se perderem de vista.
- Amazing! – diz o Marco.
Ouvimos bater as seis e meia na torre de uma igreja, e lembramo-nos que temos de ir ao clube de vídeo. Quando saímos de lá sentamo-nos novamente ao sol, à porta. Reparo que ambos vestimos T-shirts brancas.
- Let’s go get some money and have dinner at the cantina! - sugiro.
- OK.
Levantamo-nos e dirigimo-nos para a caixa automática mais próxima, que fica em Waterlooplein. Ainda há bastantes objectos abandonados pelo chão do mercado hippie. Objectos e roupas em segunda mão, que não se venderam e podem ser reciclados. Avisto uma carta de jogar, virada de costas para cima, e apanho-a. O Marco olha para mim para ver o que estou a fazer, e eu encosto a carta à perna, sorrindo, e digo-lhe:
- Guess!
Ele responde: - The queen of… - e faz com os dedos o gesto dos ouros. Viro a carta e é a Dama de Ouros. Nenhum de nós se apercebe de que ele acertou. Eu imagino que para além da dama também há uma rainha, e ele não percebe muito de cartas. Comento:
- Close!
Mas depois ele diz:
- Wait a minute! That’s it! That’s the card I said!
E eu apercebo-me que ele tem razão.
- Yeah, it is!
- Fucking hell! Alice, how many cards are there in the packet?
- About forty, I think…
- And I guessed which one this was!
- Well… I’m not even surprised anymore, Marco! I mean, are you?
- I’m shocked! – responde. – Aren’t you?
- Yeah… no, I don’t know! I mean, if we believe that we’re living in some kind of a dream, and so being that we can do anything we want, then this is just a confirmation! And now you’re surprised? What about all the rest?
- But this is just too much, don’t you think?
- Not really.
- Fucking hell! - continua ele a dizer. Depois levantamos dinheiro e voltamos a passar pelo mercado. Há um monte de roupas e objectos abandonados pelo chão, e o Marco avista algo cor de rosa.
- What is that? – pergunta ele, desviando-se da nossa rota para ir admirar e apanhar o objecto descoberto. Trá-lo em direcção a mim e continua a perguntar:
- What is this?
Trata-se de um brinquedo, um mini-ginásio para Barbie’s, com uma daquelas bicicletas sem rodas, apenas com pedais, para o treino das bonecas. Respondo-lhe, sem hesitar:
- That’s a time machine.
- You think so?
- I’m quite sure. – respondo. – What model is it?
- I don’t know...
- Let me take a look. – peço-lhe. – Oh, I see, it’s an FFG0203.
- Yeah, a Fun Fun Gym, I see it too. How does it work?
- Well, you have to stick your finger in that ring, and then roll the pedals. I’m not sure it’s working, though, sense it was thrown away.
- Yeah. Let’s try it, anyway.
- OK.
Mas nada parece acontecer. Seguimos para a universidade, e encontramos duas máquinas de lavar roupa brancas, uma ao lado da outra, abandonadas no passeio. Ficamos a observá-las durante um bocado, a abrir as portas e a carregar nos botões. No canal passam dois cisnes brancos, e paramos a admirá-los da ponte. Finalmente entramos pela porta da esplanada da universidade, e só quando chegamos à cantina nos lembramos que é sexta-feira, e que esta fechou mais cedo. Então saímos pela outra porta, a da entrada principal, e quando chegamos à rua o Marco exclama:
- This is where we died!
E percebemos que a máquina do tempo afinal funciona perfeitamente, e que nos transportou de volta ao momento em que morremos.

segunda-feira, agosto 22, 2005


Marco

segunda-feira, março 14, 2005

The whole place was creepy

The whole place was creepy, aristocratic you could say, and then, finally, of course, the big mirror on the wall. It was just so predictable, you know, when I was saying goodbye to you, and she was looking at me, through the mirror, and smiling at me, and me at her. It’s not even surprising anymore. When I look at the poster I see us, obviously - I see us all, really. In the movie, if I look closely, I see even more of us. And when I look at the poster I see her, and she’s me, simultaneously, and I’m you, and you’re him. Yeah. I’m so sure if I showed you the poster and told you the names you’d know just what I mean.

TEN TINY TALES

When I arrived to Zagreb my soul was still in Amsterdam. It had left me in the middle of the road somewhere in Germany, during the night, and it traveled back home while my body went further East. This was very confusing. Besides I was tired and my friend Laura was pretty much in the same soulless state of blankness. She wanted to slow down and rest, and I had to hurry and go look for my soul. So my body took me under the blazing sun, in a mini-skirt and sunglasses, to the main square of the city, where I unexpectedly heard a couple of guys speaking Portuguese. I said ‘hi’ and asked them if they knew where I could change some money. They didn’t, so I set on a bench and wrote a bit, and then cried a bit behind my sunglasses, since I didn’t know what else to do. Soon the two guys came to talk to me, and they both introduced themselves:

‘I’m Mauro’ said one.

‘And I’m also Mauro’ said the other.

I took off my sunglasses and wiped my tears, hoping it wasn’t too obvious that I had been crying, and they didn’t seem to notice it. We spoke for a while, and they told me they were in Zagreb until the end of the month, sharing a flat with two other Brazilian, who were both called Adilson. After this I said goodbye to the friendly guys, changed some money eventually, and headed back to Laura's sister apartment.

Late at night I couldn’t fall asleep, and didn’t understand why. All I knew was that I was feeling terrible, and my body desperately wanted to get back to Amsterdam. Then Laura told me that I had probably left my soul behind, and after that I felt a bit better, and I finally started dreaming about envelopes on a road. Many envelops in different colors.

The next morning my soul had arrived. Laura and I spoke the whole afternoon - when she finally felt awake and hungry - and in the evening we went for dinner. When we passed the main square Laura met a friend, and while they were talking I set again on the same bench. Almost immediately, I heard some voices speaking Portuguese next to me, and I looked to see if they were from the two Mauro's. They weren’t. So I didn’t say anything. And then I heard:

Alice?’

I looked a bit surprised at the guy who was looking at me, wondering what was happening and why was he guessing my name. He rephrased:

‘Are you Alice?’

I said yes. He introduced himself:

‘I’m Adilson’

I didn’t get it. And then the other guy introduced himself too:

‘And I’m also Adilson’

I finally laughed. The first Adilson said they had been trying to find me, because the Mauro's had told them that I was sad. I didn’t mention anything about my SOUL DELAY.


We stopped by a restaurant bar on the way to Pag, and I went in to use the toilet. There was a little table next to the normal tables, and all around it a group of stuffed rabbits and hares were sitting down, playing A MAD CARD GAME.



CAN I SMELL YOU?’ this girl asked me, not knowing me at all, and I just laughed and told her that I stank too much to be smelled. But she smelled me anyway and said I had a lovely smell. Then she grabbed my foot and gave it a big sniff. She kept on sniffing my feet through the day every now and again.



In GAJAC there are big black fat insects lying on the sidewalks, dead under the sun. They don’t manage to cross over during the day because it’s too hot.



Yesterday we went to A BEACH ON THE MOON. The hills around it were totally white and it was somehow odd to see the ‘other’ Moon in the sky. However, at the same time, it made perfect planetary sense. Dana asked me, when we were going down hill, which book I was reading at the moment, but right after that we started talking about something else and I never answered him. Only later, when we were lying on the white stones of the lunar beach, I took my book out of my bag and told him that it was Life, The Universe and Everything. He smiled and mentioned:

‘By Douglas Adams? It’s the third time I speak about that book on this beach. There must be some kind of connection’

When the Sun slowly set down, the water became as white as the rest of the landscape. Edo and I saw two goats walking down the dusty white hills, one of them as white as the land itself, and the other one black, and then we went to visit a couple of donkeys we had spotted in a field nearby. The first one - apparently older – made us a very eloquent speech as soon as we approached it. It had the sweetest eyes.



Laura says she DREAMS OF SONGS. She says she actually composes them in her sleep. Dream poetry is apparently common.

Marco says:

‘I’ll enter your pet project and become an evil e-mail’

Laura sings:

‘Sorry, get a job, I’m so beautiful. Sorry, get a job, I’m so hysterical’

I write:

‘A big grape complex of instability’

Laura sings:

‘Every time I go into the distance, everywhere I go, I come into resistance, everywhere, that’s where I go’

Shine talks:

‘We’re the swimming society’

Laura sings:

‘When the soul takes off, we’re just women, only women’.



THE MYSTERIOUS PULA STORY is the one that Maya will never tell.



Laura andEdo needed to catch the bus to Motovun. According to the schedule, there should be a bus at nine-fifteen. They asked for a ticket at the ticket office, and the lady in there said she wasn’t really sure if there was a bus to Motovun. She told them to ASK THE CLEANING LADY. The cleaning lady was mopping the floor right next to them, and so they asked her about the bus. She said:

‘Ask the driver’

The driver was just standing near the cleaning lady, and when they asked him about the bus, he replied:

‘Ask the ticket lady’

Then the driver said:

‘I don’t think there is a bus’

And Edo told him:

‘But it says so here on the schedule; there should be one at nine-fifteen’

The bus driver replied:

‘Then there must be one’.



I feel like some kind of mermaid, early in the morning, making FISH CONTACT, rising sand underwater with my feet, creating tiny storms so that the fish will come and see what’s happening. They come in colors and the sand toned ones slide under the storms, getting closer and closer to my feet, trying not to be noticed. The striped ones come straight at me, and the tiny ones bite my legs shamelessly. It gets scary at some point, when I start getting surrounded, and then I giggle and go.



Some moments are so holy that I can’t help myself and have to giggle in some kind of ecstasy. Laura, Edo, and I are sitting in a café near the beach, quietly reading. The cicadas are shouting all around us, proclaiming their joy and celebrating summer time. In the morning I saw a butterfly on the road, without half of HER wing, unable to fly anywhere, and that made me deeply sad. The whole thing looked like a car accident without a car and without people. Just a butterfly in shades of orange standing on the side of the road, damaged and confused, and half of her wing lying on a stone ten or fifteen centimeters away.

At night bats were flying and dancing around me under the sky full of stars, as I was walking all the way home in the middle of the road. They flew above my head back and forward, all the way until the lamps were gone.

sexta-feira, março 11, 2005

SAND

Nunca me senti tão apaixonada em toda a minha vida. Durante a primeira semana que passei na quinta o Sand levou-me a passear de carro todos os dias até sítios bonitos, e falámos interminavelmente sobre tantos assuntos, que nem todas as pessoas que conheço juntas e todas as conversas que tive com elas me ensinaram mais. Numa manhã húmida de sol intenso, deitados num campo perto de um lago pantanoso, a olhar as nuvens brancas espalhadas pelo céu, ele contou-me as razões da sua filosofia vegetalista. Brincava com a minha mão, e explicava-me como amava os animais, o planeta, os rios, a natureza.

- And people? – perguntei-lhe. Sorriu-me, mas depois virou novamente a cara para cima e respondeu:

- People scare the shit out of me.

- Why, Sand?

- Because they have no conscience.

- But it’s getting better, don’t you think?

- In some ways yes, but in other ways we’re self destructing.

- Is that why you’re vegan?

- Yes. It’s one of the things I can do to respect the animals on Earth, preserve the fields and the natural cycles, praise and give good karma to this beautiful and perfect planet.

- Isn’t it natural to eat meat, though? – pergunto.

- I guess so, for some tribes in the desert, in Africa, in South America, who live of hunting and away from civilization. But they cherish and respect the animals that feed them, and they don’t eat too much meat, only what they need. They say prayers of thanks when they catch a prey. They thank the animal for its meat. Over here, we’re supposed to be civilized, and animals are no longer beings, they’re products for consumption. It’s very easy to separate the ham from the cow. You don’t question where it came from, how it was made, how did the cow live and die. Did you ever look in the eyes of a cow? They’re the sweetest thing, the most curious and tender animals, so big and yet so kind.

- So you never ate meat in your whole life? – pergunto. – Nor your siblings?

- Nope! Don’t know what it tastes like. Don’t need it either. Remember how fat I was when I was a kid?

- You were not fat… - respondo.

- I wasn’t skinny either. And my siblings were always very strong. My parents never believed in all that bullshit about humans needing meat to grow or whatever. Nor do I. As long as we eat all the protein and minerals we can find in vegetables, we’re healthier than a meat eater. No heart diseases, no animal fat, no animal killing for our ignorance.

- I think I’d miss eating meat if I stopped it for good, though.

- You probably would, ‘cause you’re used to it. But you’d probably feel much lighter and relaxed, too.

- I already do! – comento. – Somehow everything seems simpler. No meat, just vegetables and cereals, just a feeling of harmony that I can’t really explain. It’s quite amazing, but I don’t really understand it.

- I think it’s the release of bad karma. – explica.

- How so? – pergunto.

- Well, did you ever think that animals suffer when they’re killed?

- Yes. – respondo.

- But did you really think about it? - explica. - Or even that they suffer while they’re still alive?

- No. Not while they’re alive. Why?

- Because they don’t live a free life, they’re prisoners and suffer from this. And then they’re killed and their meat contracts from fear and pain. And then you eat their nervous and contracted meat, which brings bad energy and bad karma into your body.

- I see. – digo.

- Maybe that’s why you feel peaceful now.

- Maybe. This is too much information for me right now. – comento. – It makes sense, but I need some time to think it over and make up my own mind about it.

- You still have some time! – diz, com um sorriso simpático. – You have as long as the planet is able to recycle our mistakes.

E depois deita-se em cima de mim, os seus cabelos louros com cheiro a flores caem na minha cara, e os seus lábios finos e belos beijam os meus.

Sand


Kiss Peace

MORFEU AND THE ENDLESS DIMENSIONS

This time I became tired of my dreams even faster. Not that I didn’t like all those things I imagined, and everything was really very exciting, but the fact that it was all taking place only in my mind, left me quite a lot to desire for. I needed to move, couldn’t do the things that I used to do anymore, and so I got stuck with the same problem as before. I needed to do something more real. And then the most brilliant idea I ever had came to my mind. I would write down my daydreams. I would write a whole book if I had to, and make my dreams come true on paper.

I spoke to my father and he bought me a typewriter. He was really happy just to see me get off my bed and sound excited about something for a change. I had become quite witchy looking again, not combing my hair and all dressed in black skirts and jumpers, always wearing my army boots, and my father couldn’t believe his older son had left the house and the younger ones were constantly looking like vampires. My brother Levi had long hair by then, and also wore black clothes and army boots. We enjoyed looking dark and miserable, although he was happy with his fairy looking girlfriend, and most of the time they were stoned or something.

This is how I became a writer at fourteen, and how I realized that my dreams and the older girl that I was in them were actually quite real, and that they were me. I mean, give yourself the possibility of doing anything you wish, having anything you want, back or forward in time, and you will find out who you really are. All the rest is just a bunch of circumstances that you didn’t choose for, and you just had to adapt to them, so that’s not really who you are. I also realized that my dreams already existed in my mind for so many years, that I had in fact been living that parallel life all the time. Therefore, all I had to do was write down a sort of diary of things that had already happened, most of them anyway, but at the same time were just being created by the tips of my fingers. I felt like some kind of goddess, reconstructing my own life and those of those around me, as I was describing to the minimum detail events that had never really happened. All these discoveries were so exciting and made me so happy that I wished I didn’t have to go to school and could spend all my time writing. It was so much more interesting to spin my head around with the meanings of reality, dreams and parallel words, than to go to biology and chemistry classes. Somehow, however, I kept on being a relatively good student, because somehow, I guess, everything was mysteriously connected. Although I wished I could already be studying philosophy and literature, I had to admit that mathematics had some kind of magic to them, and everything seemed to fit. How could I ever relate to my colleagues? If I told them ‘Oh, you know, mathematics are magical’ they would never speak to me again. So why bother?

In my book I told the story of Roque, as well as the story of Morfeu, Sand and Oto. I took revenge of all the bad luck I had had in my real life. Roque was my boyfriend until I met Morfeu, and fell hopelessly in love with him. This had to happen, because Roque would die anyway, so I needed to find a reason for him to start smoking heroin. When my parents got divorced, I was eighteen, and went to Florida to live in a farm with Sand and his hippie family. I met all the famous Hollywood teenagers of the Eighties while I was there, and I studied American literature in the meantime. Roque died when I was still in America. Then I also left Sand.

For a while I wasn’t very sure about Roque dying. After all, I wanted so badly for him to be alive, that it seemed stupid to let him die twice. But otherwise, how would I ever meet Oto? And then I realized that I was writing only one story, and that I could actually write as many as I wished. In this story Roque would die and I would meet Oto, but in other stories I could be with Roque forever, or with Oto forever, and my parents didn’t have to separate, or I could live with my mother. I didn’t have to choose, for all my wishes could come true and all the stories could be told, as they were already happening anyway. So I decided that I would fall in love with that boy in school with the green eyes, that I found so pretty however so silly. Only he was different in my book, for we had met in other circumstances, and we were older. His name was Morfeu and he had freckles all over his face.

I also told the story of Alice, for she kept smiling at me behind the mirrors, and appearing in my dreams. She was friends with Sara, and with the older sister of Fausta, my brother’s fairy girlfriend. Her older sister was called Laura, and she looked like a little hippie, with curly long hair, and long purple skirts. I only really saw her once, but she made a cool impression on me. In my book Sara was, of course, my best friend, as well as my brother Marco, and the fact that Levi was now my little brother was amusing to me. I spent the whole summer writing at my grandmother Olga’s house, in the south of Portugal. My grades had been good, so my father was happy and I could do whatever I wanted to. My mother wanted me to visit her in Holland, but I didn’t want to. I would write outside, under the trees, and would imagine that I was in Florida, at the hippie farm where the Summer’s lived, while Sand himself was in Los Angeles, shooting his new film. I felt happy. I would write on the beach, sometimes, with my sunglasses on. I must have looked, as always, like a little miss weird.

When school started again, late October, I was still quite tanned and healthy looking. In my book I had already left Sand, Roque had died, and I had just met Oto. Everybody wanted to read my writings, but I wouldn’t allow it. I would tell them they could all read everything once it was finished and published, and they weren’t amused by this. Pérola tried her best to be my friend, and her best was really very good, because she was an intelligent woman, not too friendly or anything, just really smart, and I have to admit, damned beautiful. However, I was still taking plenty of refuge at my grandmother Matilde’s house, and now that Marco was living there, that place felt much more like home than my actual home. Levi spent most of the time at Fausta’s place anyway, and I didn’t like babies. My new sister Eva was sweet, but I didn’t know what to do with her. She would stare at me with her big bug eyes, and although when she smiled at me it was heartwarming, when she didn’t it was just boring. She was already talking and all, but she wouldn’t say anything coherent. Sara was by then living at Noel’s place, with him and Oto and Andresa, and two other guys I didn’t know very well. They were having all kinds of adventures and taking quite a lot of drugs, so they were smart enough to exclude me from this period of their lives. Although I thought they didn’t like me anymore, they did, and Sara would still visit me sometimes, and hug me and kiss me like before, but she was just busy with her own discoveries. Anyway I didn’t mind the distance much, because I was busy as hell with school and being a writer. My new profession required a lot of concentration and solitude, and I really loved being alone in my room since early morning, drinking tea and typing away, still wearing my cozy autumn pajamas. Or going down to my grandmother Matilde’s house, and write in the living room while she was netting away. My great grandmother Ema had died already, some years before, so my grandmother Matilde really enjoyed my company. And the portable typewriter that my father had given me was the best present I had ever received.

Sara told me about her experiments with cocaine and ecstasy pills, and I included these stories in my book. After all, she was my best friend, so I had to be living the same adventures as her. She told me that those drugs and friends were opening doors and windows in her life, and showing her things that she never imagined existed before. All the stories from the books and the films were true. Drugs did open the doors of perception. I understood what she meant, I guess, because I felt myself as some kind of Alice in Wonderland, who had fallen down the rabbit whole, and found this new and magical world where everything was possible. My door had been my typewriter, and I don’t think I had ever felt so happy before. I had found some kind of cosmic entrance, and I could perfectly relate to the feelings that Sara was describing to me. Everything was just a big puzzle waiting to fit. And then Sara also told me she was pregnant. I don’t know why she told me all of this, apparently she hadn’t even spoken to Andresa about it, much less to Oto, but I guess she needed someone to talk to who wasn’t really a part of it. So she told me. Later on she decided to have an abortion, because she knew she wasn’t ready to have a baby, and she said it didn’t hurt a bit, because she was rich enough to have it done well in some private clinic.

Autumn was at its peak, and the streets of my neighborhood were covered with bright yellow leaves, while the trees were practically naked. It looked as if it had snowed, only huge and beautiful yellow leaves. We could barely see the side walks, and I loved kicking the leaves wile walking, to make them fall again all over me. I looked, of course, very weird while I was doing this.

That night I went for dinner at my grandmother Matilde’s house, with my brother Marco and his boyfriend Néri. My grandmother obviously thought they were mere best friends, and Néri even slept there sometimes. I bet she never for once imagined they had a different kind of relationship. Or maybe I would be surprised if I knew what she imagined.

My brother and Néri were the ones cooking that evening, and I was watching TV while my grandmother was netting as usual. The eight o’clock news started on channel one, and I was distractedly looking at the screen. Then I saw Sand’s picture, and I heard the 911 recording of his brother’s voice asking for help, telling them to please hurry because Sand wasn’t breathing. I stood up and couldn’t believe my eyes and my ears. My grandmother looked at me and asked me what was going on, but I didn’t even answer. The reporter added that Sand’s death seemed to have been caused by a mix of drugs. Cocaine and heroin. He had collapsed at the door of some club in Los Angeles, after he had left a Halloween party with his brother Sun and his sister Sea. I started crying, and my grandmother almost had a fit herself. She got up and asked me:

‘O que foi, minha querida?’, holding me and looking very worried. My brother and Néri heard this and came into to the living room to see what had happened. I told them a friend of mine had just died, and they didn’t understand what the hell I was talking about.

After that I couldn’t write for a long time. I felt sad and confused. Why did these things keep happening to me? Impossible passions, people dying, separations. I didn’t know Sand, that’s true, but he was in my book, he was in my dreams, and it really felt as if I had lost a friend.

I couldn’t write for weeks. The rainy season had started and I would go for walks under my umbrella, watching the drops of rain fall on my army boots, and thinking. Alice kept on being there, every time I looked over a puddle or at the windows of cars. She was still smiling her sadness away, but she no longer scared me. Or I just wasn’t afraid of being crazy anymore. I concluded that we define ourselves what it means to be crazy. So I decided that I was as sane as an apple. And I thought that if I hadn’t lost my touch for writing once I was done with my first book, I should start another one just about Alice.


Camila


Silvana

Ainda não me vi ao espelho

Ainda não me vi ao espelho. Sinto-me estonteada, esqueço-me do que aconteceu há cinco minutos, como se fosse um peixe. Depois lembro-me:
- Sonho.
Mas este não acaba. Posso controlar tudo o que faço, decidir, escutar-me nitidamente, cheirar. Belisco-me e claro que me dói. Lembro-me que naquele filme chamado Waking Life, onde a personagem principal não conseguia acordar de um sonho, e onde não era possível acender ou apagar luzes, pois nos sonhos os interruptores nunca funcionam. A minha mãe arruma as minhas coisas e eu vou até à porta do quarto tentar acender a luz. Pressiono o interruptor e a lâmpada explode. A minha mãe solta um grito. Eu encolho os ombros.
- Claro. – comento, de mim para mim.
- O que fizeste, filhota? – pergunta-me a minha mãe.
- Nada. – respondo-lhe. – Quis acender a luz, mas a lâmpada devia estar velha.
- Acender a luz com este sol? Para quê?
Mas não lhe respondo. Em vez disso pergunto-lhe se podemos ir embora.
- Sim, preta, o teu pai já vem.
- O meu pai?
- Sim, o teu pai chegou ontem à noite. Está muito preocupado contigo.
- Chegou de Portugal?
- Não, Lara, chegou do Texas. Mas não te preocupes, dentro de uns dias já te vais lembrar de tudo.
Sinceramente, o que me interessa a mim lembrar-me de tudo, se tudo não passa de um sonho persistente? Tanto me faz que o meu pai tenha vindo de Portugal, como do Texas, como da China. É-me indiferente. Quando acordar, nenhum pormenor fará grande diferença, e vou passar um dia inteiro a descrever tudo isto no meu livro dos sonhos. Agora talvez seja melhor aproveitar o reencontro, ainda que virtual, com a minha mãe. Entreter-me a fazer perguntas a todas as personagens irreais que falam comigo. Talvez consiga voar. O pior é este enjôo na cabeça. Piso algo no chão que estala. São vidrinhos. O que estão vidrinhos a fazer no chão? Depois lembro-me da lâmpada que explodiu.

quinta-feira, março 10, 2005

Da ponte para a ilha de Java

O Shine vive

O Shine vive, como na outra vida, no armazém naval ocupado, em frente ao grande canal que separa Amesterdão Norte de Amesterdão Sul, e à ponte que leva à ilha de Java. Pensei que nesta irrealidade ele talvez ainda vivesse com os pais. Mas não. Saiu de casa aos dezoito, tal como na outra existência, e foi morar na Marnixstraat, mais ou menos na altura em que eu encontrei o apartamento na Binnen Vissers, segundo me conta ao pequeno almoço. O Daniel existe. O Shine diz que estive com eles na manifestação contra a guerra do Iraque, a dançar samba. Que estive com eles na ocupação do armazém, faz agora mais ou menos um ano. Que nadei com eles no grande canal, que fizemos churrascos no telhado do enorme prédio, que vieram os bombeiros ver onde era o fogo, e que depois ficaram ali a beber cerveja connosco e a apreciar aquela vista maravilhosa. Que trabalhei atrás dos bares nas festas e concertos das caves iluminadas por velas do armazém, que ouvimos Johnny Cash à volta duma fogueira em frente ao grande canal, na noite do Solstício de Verão, e que depois levámos os colchões para o telhado do armazém, e ficámos a falar até ao nascer do Sol do dia mais longo do ano. O Johnny Cash morreu nesse Verão. O Shine diz que foi comigo a Portugal, diz que ficámos em casa do meu irmão Marco, na Penha de França, e que o meu primo Rio voltou para casa da minha tia Nela, para nós podermos ficar no quarto dele. E que, um ano antes, fomos visitar a família dele ao Tenessee, com os pais, com o Kite e com a Agate, e que fomos ao Texas, a uma cidade chamada Austin. Conta-me tudo isto, e eu não me lembro de nada, a não ser do que fiz também na outra vida. Mas gosto que ele me conte o que supostamente vivi neste sonho, visto que é a única maneira de saber quem sou. Pergunto-me se terei diários, para que possa descobrir-me sem ser através das memórias dos outros.




Tenho diários. Ontem os meus pais trouxeram-me a casa pela primeira vez. Ainda não acordei. Passou uma semana desde que despertei no hospital e os meus dias têm sido um mar muito agitado de descobertas incessantes. Sinto-me como uma extraterrestre, embora viva no mesmo planeta que antes. Tenho todos os meus amigos para conhecer, e a mim própria, aos meus pais, à minha irmã, às minhas paixões, à minha casa. A campainha não pára de tocar, e cada visita é uma aventura interminável. Gostava de não ter de comer nem de dormir, para poder ler todos os meus diários, ver todas as minhas fotografias, falar com todos os meus amigos, telefonar ao meu irmão, ir trabalhar, ir ao médico, ir a casa dos meus pais e dos pais do Shine, a casa da Camila e ao hotel ocupado onde vive a Silvana. Parece que vou ficando cada vez mais perplexa com o decorrer dos dias. A surpresa e a confusão não passam, pelo contrário, aumentam. Apenas as tonturas passaram. Não sonho durante as noites. Durmo profundamente e não recordo nada para além de uma grande escuridão. Antes sonhava quase sempre, escrevia livros e livros cheios de sonhos que tinha durante as minhas noites místicas. Sonhava que voava, sonhava com o Shine, com o Saul, com a Silvana, com o nome do Marco. Chamava sempre o seu nome a outra pessoa, por engano, embora soubesse perfeitamente que estava enganada. Na maior parte dos meus sonhos vivia com todos os meus amigos. Com a Camila, com o Vilmo, com muita gente. Por vezes tínhamos que fugir de alguém que nos queria matar. Quase todas as noites sonhava que vivíamos juntos. E que voava. Nadava à rã pelo ar, por cima de campos com flores ou por cima do mar e de grandes precipícios. Agora esse meu mundo noturno simplesmente desapareceu. Mas, ao que parece, também sonhava neste sonho, pois encontrei livros de sonhos que escrevi antes do acidente. Não consigo, no entanto, encontrar nenhum dos meus livros sobre a Lara e sobre a Alice. Nem o primeiro sobre os tempos do liceu, nem o segundo sobre o Roque, nem o terceiro sobre Amesterdão, nem o quarto sobre o futuro. Se ficar neste sonho muito tempo, posso voltar a escrevê-los. A Verónica, pura e simplesmente, não existe. A psiquiatra dos rastas louros e compridos diz-me que tenho um distúrbio da despersonalização, e que este se caracteriza por uma percepção distorcida da identidade, do corpo e da vida, e pela sensação do mundo ser irreal ou ser um sonho. Explica-me que este distúrbio é o terceiro sintoma psiquiátrico mais comum a seguir à ansiedade e à depressão, embora tenha sido pouco estudado isoladamente. Diz-me que ocorre normalmente após o indivíduo passar por um perigo potencialmente mortal, tal como um acidente, um assalto, uma doença, ou uma lesão grave. Os sintomas tanto podem ser temporários como persistirem ou retomarem durante muitos anos. Podem surgir juntamente com ansiedades e pânicos, ou serem ajustados e até bloqueados de modo a perderem o impacto. Podem atormentar-me ao ponto de eu sentir que enlouqueço, ou podem simplesmente desaparecer sem qualquer tratamento. Receitou-me calmantes, e a continuação das consultas com ela e com os seus rastas absolutamente irreais. Disse-me que preciso manter-me o mais serena possível, devido a todas as coisas que o meu cérebro acredita estar a conhecer pela primeira vez, e que me estimulam e confundem demasiado. Eu disse-lhe que vou continuar a acreditar em mim própria, e a ter a certeza de que estou a sonhar. Ela respondeu-me que desde que eu me sinta bem, apesar de confusa e excitada, posso acreditar naquilo que eu quiser. Eu respondi-lhe que tudo isto não passa de uma grande aventura.


Shine

O grande armazém naval ocupado

Continuo a sentir que voltei atrás no tempo

Continuo a sentir que voltei atrás no tempo, como se tivesse novamente quinze anos e subisse a rua do liceu numa tarde de Primavera, e o Morfeu passasse por mim e me piscasse um olho verde por baixo da franja comprida. E depois ele volta a pedir-me para ser sua namorada e a desaparecer durante todo o Verão. Nesse Inverno em que o Morfeu andou com outra rapariga, eu deitava-me em cima da minha cama e punha-me a imaginar que a minha vida mudava completamente de um dia para o outro, e que ele se apaixonava por mim. Tinha a sensação muito forte de que pertencíamos juntos. Para além disso, nessas minhas tardes de sonhos acordados, retrocedia em imaginação à infância e reconstruía tudo da maneira como sempre desejei que tivesse sido. Sentia assim felicidades que de outro modo não poderia ter experimentado. Outras vezes lembrava-me do Roque. E como também me cansava de viver só em sonhos, levantei-me da cama numa tarde amarelada e fui passear até à rua dele, para tentar vê-lo e assim distrair-me um pouco. Não tinha nada a perder. E, se o visse, melhor.

Quando virei a esquina da rua dele esta estava vazia. Mas enquanto caminhava em direcção ao seu prédio ouvi a grande porta da nossa infância abrir-se. Ele saiu. Vestia roupas pretas, calçava botas da tropa e tinha o cabelo louro e comprido a cair-lhe pelos ombros. Reconheceu-me imediatamente. E quando passámos um pelo outro sorrimos e dissemos olá. Voltei para casa pelos passeios cheios de carros dos anos oitenta com uma sensação quente no estômago. Será que ele também se sentia sozinho?

As aulas acabaram

As aulas acabaram. É Santo António e há uma festa na Padaria do Povo, à noite. Vou buscar a Laura a casa, ela está sozinha, e diz-me para entrar. Sorri com um ar entusiasmado:

- Tenho aqui um haxixe libanês que quero que experimentes comigo.
- A sério? É bom?
- Deve ser.
Então sentamo-nos frente a frente, de pernas cruzadas, no meio do chão da cozinha iluminada, e a Laura enrola o charro. Fumamos. O efeito é quase imediato e tão inesperado como quando subia as escadas do meu prédio e fiquei na dúvida se estava a sonhar. Como se de repente a cozinha, e nós, passássemos a outra dimensão. Então a Laura diz-me:
- Tive agora a sensação muito forte de que já vivi este momento.
- Quando?
- Não sei, talvez nunca, talvez a sensação seja de que este momento é suposto acontecer.
- Estou a ficar arrepiada, Laura!
- Não tenhas medo, Alice. É uma sensação boa, como se esta noite fizesse parte de uma história maior.
- Como as histórias dos nossos livros?
- Sim, como se o teu livro da levitação e meu livro nuclear já tivessem sido escritos, assim como tudo sobre a Lista E e o Festival da Paz.
- Por quem?
- Não sei. Talvez por nós, por outros, pelo Michael Ende.
- Não estou a perceber.
- Eu também não percebo completamente, mas não é preciso, porque a sensação é tão forte!
- O que é que sentes?
- Sinto que já vivemos este momento, ao mesmo tempo em que o estamos a viver e que o vamos viver novamente.
- Como se o passado, o presente e o futuro fossem só um?
- Talvez. É como uma espiral que gira, gira, e nunca tem fim.
- E deixa-me tonta.
- Mas não faz mal, pois não temos que pensar sempre nisto. E sabes o que é o melhor de tudo?
- O quê?
- É que como a nossa história está sempre a ser rescrita e revivida nós próprias podemos modificá-la.
- Então porque é que não somos felizes?
- Acho que é por causa do Nada.
- E o Nada é o quê?
- É o medo.
- Será que o medo é preciso?
- Talvez seja, para que os homens entendam como é importante viver.
- E o que é que sentes mais?
- Sinto que há uma pequena janela que se abriu um pouco, e para onde posso espreitar e ver coisas lindas que normalmente não conseguimos distinguir.
- Tais como?
- Tais como alguém que escreve a nossa história, não sei quem, mas que já sabe o que vamos dizer porque já o dissemos antes.
- Quem?
- Não consigo ver, Alice. Mas esse alguém sabe o quanto nos amamos e o quanto nos odiamos. Sabe tudo o que se passou entre nós até agora, e tudo o que se vai passar a partir daqui, porque tudo já aconteceu!
- E esse alguém observa-nos?
- Sim, está connosco neste momento a sentir o mesmo que nós e também já viveu isto antes.
- Então o meu livro já está escrito?
- Já, mas tu vais escrevê-lo outra vez, porque também já está escrito que o vais fazer, porque esta é a nossa própria História Interminável. Entendes?
- Acho que sim. E que mais vês pela tua janela?
- Vejo um mundo paralelo ao nosso, o qual não estamos preparadas para entender completamente, e que por isso só se revela às vezes.
- E esse mundo é perfeito?
- Talvez seja tão imperfeito quanto este, mas ao contrário.
- Do quê?
- Do nosso, tal como se fosse o outro lado de um espelho.
- E nós vivemos lá também?
- Sim, e estamos sentadas, neste momento, numa cozinha, a falar sobre o mesmo assunto ao contrário.
- O que é que dizemos?
- Dizemos que somos tão felizes que não conseguimos imaginar que haja o outro lado do espelho.
- Onde há medo.
- Sim, e os dois mundos, no fundo, completam-se.
- E achas que a Ema, a Sara, o David, o Levi e todos os nossos amigos vão pensar nisto um dia?
- Talvez, quando estiverem preparados.
- Vamos contar isto a alguém?
- Acho que é melhor não.
- Algumas pessoas estão mais próximas do que outras dessa janela, não achas?
- Acho que sim. E outras já estiveram mais perto e depois voltaram a afastar-se.

Capa de Vota Em Mim Eu Voto Em Ti

quarta-feira, março 09, 2005

O Midas anda com a Rosa

O Midas anda com a Rosa, embora ela esteja há muito tempo apaixonada por outro rapaz chamado Néri, que é giro e simpático. Mas toda a gente diz que ele agora gosta de rapazes. A Rosa recusa-se a acreditar nisso, como se fosse impossível, pois conheceu-o bem e sabe que ele gosta de raparigas. Será que ela nunca ouviu falar de bissexualidade? O Midas, pelo menos, já ouviu falar de poligamia, pois para além de mim e da Rosa ainda gosta da Ágata. Na associação de estudantes inauguramos a “Rádio É”, limpamos a sala de convívio, e todos sentimos que precisamos de algo para fazer juntos, pois andamos enfadados. A Ema diz que necessita de outro Festival da Paz. Eu a Laura deambulamos pelo bairro sozinhas todas as noites, e numa delas encontramos o Vilmo. Fumamos um charro com ele na igreja. Depois eu o Vilmo levamos a Laura até ao Jardim da Parada, ela vai para casa e ele acompanha-me até à minha rua. Despeço-me dele e subo as escadas do meu prédio às escuras, não sei porquê, talvez por achar que assim faço menos barulho e não acordo o meu pai. Antes de chegar ao meu patamar, subitamente, fico na dúvida se estou acordada ou a sonhar. Isto nunca me tinha acontecido. Mas concluo que estou acordada e que, depois de tanto tempo, finalmente fumei um charro que me fez efeito. Abro a porta da entrada e vejo a luz do quarto do meu pai acesa ao fundo do corredor. Tento caminhar calmamente, mas sinto-me alterada e o corredor escuro com a luz ao fundo começa a dar-me vontade de rir. O meu pai está sentado à secretária a desenhar, a fumar cigarros, e a beber cerveja. Devem ser umas duas da manhã. Sinto-me como se fosse desmaiar a qualquer momento e tento disfarçar para ele não perceber. Bato levemente na sua porta e digo-lhe, com uma voz alegre e um sorriso:
- Boa noite. Tudo bem?
- Sim, e tu?
- Estou com sono, vou-me deitar.
- Então dorme bem.
- Obrigada. Até amanhã.
Entro para o meu quarto e dispo-me rapidamente. Deito-me convencida de que vou adormecer e assim esquecer que estou pedrada e evitar que o meu pai descubra alguma coisa. Mas daí a pouco o meu coração começa a bater aceleradamente, e faz tanto barulho que fico na dúvida se o meu pai o poderá ouvir também, no quarto ao lado. Para além disso, receio que me esteja a dar um ataque cardíaco ou algo parecido, e apesar de não estar muito contente com a minha vida não me apetece morrer agora. Sento-me na cama para ver se o meu coração se acalma, mas não. Então penso que mal por mal mais vale ir falar com o meu pai sobre isto. Levanto-me e volto a bater-lhe à porta, que está entreaberta:
- Sim?
Ele continua sentado à secretária a beber cerveja e a fumar cigarros.
- Fumei um charro e agora não sei se me estou a sentir bem.
Ele levanta-se, com um ar preocupado.
- Um charro de quê? Queres ir ao hospital?
- Não, acho que não. De haxixe. Só gostava de saber se o que estou a sentir é normal.
- O que é que sentes? Dói-te a barriga? Queres vomitar?
- Não.
Sento-me em cima da sua cama e encosto-me às suas almofadas, relaxadamente, com as pernas cruzadas e um ligeiro sorriso idiota. Digo:
- Se eu soubesse que isto não era perigoso até me estava a divertir.
Ele pega no telefone e põe-se a marcar um número. Eu acrescento:
- Agora estou a ver tudo às bolinhas...
- Estou? Lia? Olha, a tua filha agora droga-se! Acho que é melhor falares tu com ela porque eu cá não percebo nada disto.
Passa-me o telefone e a minha mãe está do outro lado da linha, com voz de sono:
- O que foi, Alice?
- Fumei um charro.
- Sabes que horas são aqui? Estás bem?
- Acho que sim.
- Com quem é que fumaste?
- Com uma amiga.
- Então e foste contar ao teu pai?
- Sim.
- Vai-te deitar, isso passa, não tenhas medo.
- Está bem.
- Depois falamos.
- Até amanhã.
Desligo e levanto-me da cama.
- Estou melhor. Vou comer.
Na cozinha preparo um pão com Nucrema e bebo um copo de leite gelado. Depois fico com sono, enquanto mastigo o pão, novamente sentada na cama do meu pai. Anuncio:
- Vou-me deitar.
- Tens a certeza?
- Tenho.
Fica parado a olhar para mim, e como ainda está assustado deixa-me ir sem dizer mais nada. Daí a pouco, quando já estou deitada e quase a adormecer, sinto-o entrar no meu quarto. Põe-me a mão na testa, pergunta-me se estou bem, respondo-lhe que sim e vai-se embora. Adormeço.