segunda-feira, dezembro 25, 2006
domingo, dezembro 24, 2006
A minha mãe está cada vez mais doente
A minha mãe está cada vez mais doente. Não quer ir ao médico. Diz que não quer descobrir que tem qualquer coisa horrível. Ela e o Luca vão mudar-se para um quarto no hotel onde eu trabalhei no Verão, e a Luna vem comigo para um centro de abrigo durante o fim de semana, e depois para uma casa de freiras no meio do Bairro Vermelho. Estou assustada. Sinto-me terrivelmente sozinha e a minha vida parece uma anedota, um pesadelo, um filme dramático. Mas, simultaneamente, a magia não cessa. A sorte acompanha-me, estranhamente acompassada com o acaso e com os limites do abismo. Sigo um rumo inconsciente que parece já estar traçado, e deixo-me flutuar. Mas tenho medo. Uma espécie de pânico incrédulo e indefeso. Deixo-me flutuar porque não posso fazer absolutamente mais nada. E assim, ao mesmo tempo, no meio de um vazio assustador, sinto uma paz de loucura. Na última noite antes de ter que sair de casa do Carel, ando com a Priscila aos berros pelas ruas escuras, ambas a cantar It’s a wonderful world, do Louis Armstrong. Parecemos duas adolescentes felizes e embriagadas, despreocupadas, alegres. Mas carregamos nos ombros pesos invisíveis do tamanho do mundo.
sábado, dezembro 23, 2006
A minha mãe está doente
A minha mãe está doente, não sabe o que tem nem quer saber. Só sabe que tem medo. O Verão está quase a terminar e os dias estão frios. O tio do Carel mandou-lhe uma carta a dizer que se nós não sairmos do prédio em quinze dias chama a polícia.
- Tens que ir para Portugal e levar a Luna. –diz a minha mãe. - Tens que pedir ao teu pai que te ajude.
- Nem penses. – respondo-lhe. – Quando saí de casa foi para nunca mais voltar.
- Então pede ao Romão que te ajude. Ele é o pai da Luna.
- Também o deixei a ele. Não volto atrás.
- E nesse caso vais fazer o quê, podes dizer-me?
- Não sei.
- Eu e o Luca vamos viver no hotel onde tu trabalhaste, não temos dinheiro para tomar conta de ti e da Luna, tu já não nem tens emprego, como é que te vais sustentar?
O meu estômago contrai-se e os meus olhos começam a ficar cheios de lágrimas. Viro-lhe as costas sem lhe responder. Desço as escadas e saio. Faz um sol morno de princípios de Outono, e olho para a minha longa sombra enquanto caminho sem destino, ao longo do canal ao fim da rua. Hoje não tenho dinheiro nem para comprar fraldas para a Luna. As lágrimas saltam-me dos olhos e tenho que me sentar na entrada de um prédio com a cara escondida entre os braços. Choro. Não sei que mais fazer. A Priscila também foi despedida porque acabou o Verão e não há turistas. Ela vive em quartos de hotel com o namorado e não me pode ajudar. A minha mãe está doente e assustada, o Luca não tem dinheiro para comermos. O Carel não consegue convencer o tio a deixar-nos ficar no prédio. E então ouço:
- Hello, beautiful girl, why are you crying?
Olho para cima e vejo dois viciados em heroína a sorrirem-me com um ar interessado.
- I don’t have money to buy diapers for my baby.– respondo-lhes.
- Oh, don’t worry, we can help you! – dizem-me. – We can take you to a hospital, they will give you some diapers! Wanna come with us?
- OK. – aceito, e levanto-me. Eles sorriem-me, contentes não sei bem com o quê. Devem ser os dois viciados em heroína mais felizes e energéticos que já vi. Levam-me até à Estação Central, onde apanhamos o metro sem pagar. Saímos quatro paragens depois, em Wibautstraat, e andamos um pouco até ao hospital. Eles entram, comigo atrás, sem perguntarem nada a ninguém e põem-se a percorrer corredores como se fossem enfermeiros. Levam-me à secção dos bebés, e então encontram uma enfermeira pelo caminho e pedem-lhe fraldas. Ela olha-nos com um ar um tanto indefeso, e diz:
- I’m not sure I’m suppose to give you diapers, you know?
- Yes, - diz um dos toxicodependentes – but our friend needs them for her baby, she has no money, you can help us, can’t you?
Então ela vai buscar umas cinco fraldas e dá-nos, ainda pouco convencida.
- Now please go away. – pede.
- Thank you! – agradecem os toxicodependentes, e saímos dali. – Now let’s get more diapers at some other hospital!
Eu sorrio finalmente nesse dia, e digo-lhes:
– I think this will be enough for today. Tomorrow my mother’s boyfriend will have some money for shopping.
- What about food? Are you hungry? Do you have food for your baby?
- I have food for Luna, but I could eat something.
- So come with us, beautiful girl, we’ll take you to a place where you can eat!
- OK.
E desta vez apanhamos um eléctrico, também sem pagar. Levam-me até uma rua onde nunca estive, com um grande graffiti da cara de uma mulher numa parede. Andamos uns cem metros e entramos num centro social, onde há mais gente com ar de toxicodependente ou de sem abrigo, sentada em sofás ou nas mesas por ali espalhadas. Há uma televisão na parede a transmitir a MTV. Atrás do bar perguntam-me se quero café ou chá, e quantas sandes. Peço uma sandes de queijo e um café com leite e açúcar. Os meus dois amigos viciados em heroína dizem-me que vão andando e desejam-me boa sorte.
- Thank you very much for everything! – agradeço-lhes.
- It’s fine! A beautiful girl like you shouldn’t cry! – responde-me um deles, e vão-se embora.
Fico a comer o meu pão com queijo, e a olhar para a televisão. Começa a dar um vídeo dos Guns & Roses. Eles cantam “Don’t you cry tonight, there’s a heaven above you, baby!” e eu volto a ter vontade de chorar, porque penso que aquela música toca naquele momento especialmente para mim.
sexta-feira, dezembro 22, 2006
quinta-feira, dezembro 21, 2006
Micanopy
A Sea preparou o chá e bebemos. Explicou-me que aqueles cogumelos não sabiam tão mal como os outros, mas eu nunca comera nenhum. O chá tinha um sabor predominante a mentol. Depois partimos no descapotável laranja para o pântano. Pelo caminho comecei a sentir–me mole e feliz, e as cores do dia e dos objectos, das nossas roupas e cabelos, de toda a paisagem, tornaram-se mais apelativas, como se antes nunca tivesse reparado devidamente nelas. A Sea guiava, eu ia com ela à frente, e o Sand estava sentado atrás. Quando olhei para ele os seus cabelos esvoaçavam com a velocidade do carro e com o vento, e ondas de cor amarela libertavam-se deles e ficavam a pairar no ar, por cima da estrada, até desaparecerem na distância. Ri-me. Depois imaginei que viajámos dentro de uma abóbora, a qual se deslocava rapidamente a caminho de outra dimensão, soltando um rasto laranja. Não tive muito tempo para me aperceber do que se estava a passar. Senti que entrávamos noutro mundo, que sempre existira à nossa frente, mas o qual não se revelava se não lhe prestássemos a devida atenção. Um mundo paralelo ao nosso. A dimensão em que vivem as crianças e as fadas. De dentro do mais profundo ser do Sand emergiu uma criatura bela que me fez lembrar um elfo, e os cabelos da Sea tornaram-se azuis por cima do seu vestido feito de mar. As cornucópias e flores do meu lembraram-me que eu fora em tempos uma bruxa japonesa da floresta, com longos cabelos negros, que agora retomava ao momento. E a abóbora deslocava-se rapidamente com nós os três lá dentro. Depois o Sand pôs os óculos escuros e havia algo de mosca nele. Uma mosca loura. Porque não? A própria Sea podia perfeitamente ser uma borboleta de tons azuis e asas transparentes, e eu uma espécie de besouro coberto de folhas e flores. Todos a viajar numa abóbora. Fazia perfeito sentido.
Quando chegámos ao pântano o tempo parou de repente, e a Sea e o Sand mexiam-se demasiado rápido, cada vez mais como se de insectos se tratassem. Então senti-me um tanto perturbada e confusa, sem calma suficiente à minha volta para me aperceber do desenrolar dos eventos. O Sand reparou no meu ar imóvel e perguntou-me:
- How do you feel?
- Please stop moving so fast. – pedi-lhe. E depois ri-me e exclamei: - You look so much like a fly!
- Oh, shit! – comentou ele, sorrindo. – You’re already tripping!
E por essa altura eu já não conseguia parar de rir. Tudo me parecia hilariante. A expressão semi-sorridente do Sand com uns enormes olhos de mosca, a Sea a vir ter comigo com o seu vestido cheio de ondas a rebentarem em espuma e os seus cabelos emaranhados como se fossem algas, a nossa abóbora estacionada e cansada daquela viagem tão rápida através das dimensões e eu, confusa e desejosa de uma pausa para o entendimento no meio da velocidade dos acontecimentos, sem conseguir parar de rir ou ter qualquer poder de decisão.
- Are you feeling OK? – perguntou-me a Sea.
- Everything is too fast! – respondi-lhe. – And, at the same time, so slow!
- It’s all right, Lara. – disse-me. – Just enjoy it. We’re all together. You’ve just entered another perception. It’s beautiful, don’t you think?
Disse-lhe que sim e deixei de me preocupar com os ritmos alterados e com a necessidade de controlar fosse o que fosse à minha volta ou dentro de mim, mesmo o facto de continuar a rir, sozinha, sem já saber porquê. Tudo estava bem. Pegámos na cesta que a Sea preparara com fruta e água, e afastámo-nos da nossa abóbora a caminho do pântano.
sexta-feira, dezembro 01, 2006
Tive agora a sensação muito forte de que já vivi este momento
- Tive agora a sensação muito forte de que já vivi este momento.
- Quando?
- Não sei, talvez nunca, talvez a sensação seja de que este momento é suposto acontecer.
- Estou a ficar arrepiada, Laura!
- Não tenhas medo, Alice. É uma sensação boa, como se esta noite fizesse parte de uma história maior.
- Como as histórias dos nossos livros?
- Sim, como se o teu livro da levitação e meu livro nuclear já tivessem sido escritos, assim como tudo sobre a Lista E e o Festival da Paz.
- Por quem?
- Não sei. Talvez por nós, por outros, pelo Michael Ende.
- Não estou a perceber.
- Eu também não percebo completamente, mas não é preciso, porque a sensação é tão forte!
- O que é que sentes?
- Sinto que já vivemos este momento, ao mesmo tempo em que o estamos a viver, e que o vamos viver novamente.
- Como se o passado, o presente, e o futuro fossem só um?
- Talvez. É como uma espiral que gira, gira, e nunca tem fim.
- E deixa-me tonta.
- Mas não faz mal, pois não temos que pensar sempre nisto. E sabes o que é o melhor de tudo?
- O quê?
- É que como a nossa história está sempre a ser reescrita e revivida, nós próprias podemos modificá-la.
- Então porque é que não somos felizes?
- Acho que é por causa do Nada.
- E o Nada é o quê?
- É o medo.
- Será que o medo é preciso?
- Talvez seja, para que os homens entendam como é importante viver.
- E o que é que sentes mais?
- Sinto que há uma pequena janela que se abriu um pouco, e por onde posso espreitar e ver coisas lindas que normalmente não conseguimos distinguir.
- Tais como?
- Tais como alguém que escreve a nossa história, não sei quem, mas que já sabe o que vamos dizer porque já o dissemos antes.
- Quem? - Não consigo ver, Alice. Mas esse alguém sabe o quanto nos amamos, e o quanto nos odiamos. Sabe tudo o que se passou até agora, e tudo o que se vai passar a partir daqui, porque tudo já aconteceu!
- E esse alguém observa-nos?
- Sim, está connosco neste momento, a sentir o mesmo que nós, e também já viveu isto antes.
- Então o meu livro já está escrito?
- Já, mas tu vais escrevê-lo outra vez, porque também já está escrito que o vais fazer, porque esta é a nossa própria História Interminável.
Encosto-me para trás na cadeira e toda a minha pele se arrepia. Fico a olhar para o que acabei de escrever, estupidificada. O meu estômago contorce-se, e volto a sentir o mesmo que senti na cozinha da Laura, há tantos anos. Excepto que agora percebo ao que ela se referia, e a sensação é mais forte ainda. Ela falou-me, naquela noite, simultaneamente, em todos os tempos. A pessoa que estava connosco, que escrevia a nossa história e sabia tudo o que ia acontecer, porque tudo já tinha acontecido, era eu. Sou eu agora, ao descrever a nossa conversa, e sou eu que sei tudo o que se vai passar a seguir, porque tudo já aconteceu. A Laura descobriu um buraco no tempo, e falou comigo do passado para o futuro, e no presente dos dois tempos em simultâneo. Foi por isso que sentimos, então, que descobríramos algo magnífico, e que a espiral infinita das histórias intermináveis nos atordoou e encheu de uma qualquer beleza misteriosa.
A partir daí comecei a desconfiar que vivíamos todos os tempos sincronicamente, e que quem me observava era a eu a mim própria, do futuro para o passado, quando recordava a minha imagem sentada à beira do lago enorme e pantanoso, de cabelos ao vento, a sentir-me observada. Percebi que a história do meu primeiro livro começara realmente em frente a esse lago nórdico, quando ouvia Pink Floyd através dos auscultadores portáteis, e me lembrava do Roque numa aula da segunda classe, e dos meus desejos numa tarde de sol. Aquela música, The Gunners Dream, relatava o momento exacto que eu vivia. As memórias desciam através das nuvens para me encontrarem, e no espaço entre o céu e a esquina de um campo estrangeiro, eu tive um sonho. Um sonho que se realizou a partir desse momento, mas numa dimensão diferente da desejada. E, se reparamos bem, talvez seja isso que acontece com todos os nossos desejos.
